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domingo, 7 de dezembro de 2014

PEÇA - MORTO NO AMOR, LOUCA DE AMOR - Por Manuel Tamayo y Baus



MORTO NO AMOR, LOUCA DE AMOR 
(De a Loucura de amor)
Na corte de Felipe o Formoso de Espanha e de sua mulher Joana a louca.
O Almirante, D. Alvaro, Marliano, o Marques de Villena, prelados, nobres e médicos; depois D. João Manuel, em seguida a Rainha e por fim Hermano. 
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A PEÇA DE TEATRO 
           Alvaro  - E sua alteza?
           Marliano - Acaba de deixar o leito.
           Almirante - Com vossa permissão? 
           Marliano - Não me quis opor ao seu desejo. 
           Almirante - Mas continua melhorando? 
           Marliano - Bem disse eu que esse repentino alívio prognostica o seu fim próximo. (move-se o reposteiro que cobre a porta da direita).
           Alvaro - Não há nenhuma esperança? 
           Marliano - Estão esgotados todos os recursos da ciência; mata-o uma febre pestilencial incurável. 
           Almirante - E supondes que hoje mesmo deixará de existir? 
           Marliano - Dentro de algumas horas. (ouve-se um gemido por trás do responsório).
           Alvaro - Não ouvis? 
           Almirante - O que? 
           Alvaro - Nada: foi sem dúvida o coração que me enganou. 
           João - (Entrando pela porta da frente) - Senhores: é urgente refrear a audácia dos flamengos. Andam dizendo por toda a parte que o rei foi envenenado. 
           Marquês - Será possível? 
           Almirante - Que iniquidade! 
           João - Uns atribuem o crime aos agentes do rei D. Fernando; outros dizem que foi a Rainha que o envenenou num acesso de ciumes.
           Alvaro - Parece incrível! 
           Rainha - (Saindo por trás do reposteiro) - Eu! eu envenenar o meu esposo! Dizem isso? Dizem isso? Jesus! Que Deus os castigue! (Cobre o rosto com as mãos soluçando). 
           Marliano - Estava escutando-nos. 
           Alvaro - Infeliz! 
           Marliano - (Aproximando-=se dela com carinhosa solicitude) - Senhora! 
           Almirante - Não se aflija Vossa Alteza dessa maneira.
           Rainha - com que então... (Contém os soluços e faz inúteis esforços para falar). 
           Marliano - Falai. 
           Almirante - Falai, senhora. 
           Rainha - com que então não há remédio? 
           Marliano - Que é que a misericórdia de Deus não pode remediar!
           Almirante - Confinai n'Ele. 
           Rainha - E porque não em vós? (Aos médicos) Chegai-vos para o pé de mim. (os médicos aproximam-se) - Meditemos; o Rei é jovem, tem só vinte e oito anos; eve haver meio de curar qualquer doença num corpo jovem e vigoroso. Repensai bem; não admirava que vos tivésseis esquecido do remédio de que carecemos; existe sem dúvida algum bálsamo, alguma planta com virtude suficiente para salvá-lo. Não bastaria todo o meu sangue para reanimar o seu? Fazei outro esforço, meu bom Marliano, meus fiéis amigos. Não; não vos caleis quando vos imploro a sua vida. 
           Marliano - Fizemos já por ele quanto estava na nossa mão. 
           Rainha - E hei de perdê-lo? Deus meu, que enfermidade tão horrorosa! Ainda há tão poucos dias, tão cheio de saúde e de força... E hoje... quem o reconhece? Amanhã... será talvez um cadáver... Parece impossível. Nunca imaginei que ele pudesse morrer primeiro do que eu.
            Almirante - Conformai-vos, senhora. 
            Rainha - Bem procuro ir-me conformando a pouco e  pouco; mas ai! não posso conformar-me, não posso!
            Almirante - Dominai a vossa aflição, como cumpre a uma rainha. 
            Rainha - Pela sua vida tudo quanto possuo; o meu cetro pela sua vida. Não é verdade, senhores, que todos  me ajudareis a fazer sentar no trono aquele que conseguisse evitar a sua morte? Está dito: quem cobiça uma coroa, que o salve, que mo restitua. Não sois médicos? Não tendes obrigação de curá-lo? Ai de vós se o perco! Reparai bem no que vos digo. D. João Manuel, senhor marques de Villena, creio que sem razão vos ofendi outro dia. Não me fiques com rancor, sêde generosos com esta pobre mulher que tanto sofre.  Não vos ocorre nenhum meio a tentar? Não conheceis ninguém que saiba curar  esta espécie de doença? Um desses nigromantes que fazem milagres? Sim, creio nos milagres do homem; em tudo creio. Procurai alguns deles e trazei-os para que vejam Felipe. 
            João - Pedi socorro só ao Altíssimo. 
            Rainha - Deus não quis ouvir-me. Não encontrei piedade nem na terra nem no céu. Almirante, escrevei hoje mesmo a meu pai; convencei-o a que venha; que Castela vai ficar sem reis, e meus pobres filhos sem pai e sem mãe.
            Alvaro - (adiantando-se) - Escreveremos, senhora, ele virá. 
            Rainha - D.Alvaro Não tinha reparado em vós; o rei quer-vos. 
            Alvaro - Eu aspiro a glória de lhe beijar os pés.
            Rainha (com dor reconcentrada) - Ele morre, D. Alvaro, ele morre. 
            Marquês - Tende coragem, senhora. 
            Almirante - Pensai que ainda vos restam sagrados deveres a cumprir. 
            Marliano - Salva-lo-emos, se for preciso, quer queirais ou não 
            Rainha - Podeis salvar-me a mim e a ele não? vamos, vamos, não me irriteis; não tenho paciência para ouvir estas coisas. 
            Hermano (entrando pela porta da esquerda e aproximando-se da rainha) - Ali está. 
            Rainha A Hermano) - Que espere um momento (Hermano retira-se. Aos médicos:) Já não lhes peço senão que viva mais três dias; dois, um, ao menos. Que viva até amanhã. E vós outros senhores, fazei com que nenhum momento se interrompam as cerimônias religiosas na capela do Palácio. Elevai às alturas fervorosas preces pelo vosso Rei. (Saem todos pela porta da frente, exceto a Rainha). 
             A Rainha, dai a pouco Aldara; depois o Rei e os seus dois médicos. 
             Rainha - (Aproximando-se da porta da esquerda).  Aldara! Aldara!
             Aldara - Senhora! 
             Rainha - Tive razão em supor que acederias afinal aos meus rogos. 
             Aldara - Nunca devia tornar a pisar este sítio. 
             Rainha - Aldara, vou ficar viúva. 
             Aldara - Roguei por Vossa Alteza dia e noite, prostrada entre as imagens do mosteiro. Com razão vos afligis; chorai o vosso esposo. 
             Rainha - Tu hás de me consolar melhor que esses homens  que aqui estavam. Saber o que me dizem? Que tenha coragem. Quando lhes estiverem à morte o irmão, a esposa e o filho, irei também dizer-lhes que tenham coragem. 
             Aldara - Não me obrigueis a permanecer em palácio; recordai as minhas maldades, o meu hálito mancha; a minha presença aqui é um sacrilégio que aumenta a justa cólera do Todo Poderoso. 
             Rainha - As tuas maldades? Oh! porque não o amaste tu? Seriamos agora duas a chorá-lo. Ouve: é necessário que fiques. Os médicos asseguram que ele já não tem remédio; pode ser que tenha contudo algum. Chamei-te para que El-Rei te veja, para que tu lhe digas que o amas. 
             Aldara - Oh! minha adorada senhora! Pensai que avivaria assim os seus remorsos. 
             Rainha - O infortunado esforça-se por remediar com ternura aparente o mal que dantes me causou com o seu desatino; mas sei bem que é a ti só que ele quer. Vem; que ele te veja, que ele te ouça; um olhar dos teus olhos,uma palavra dos teus lábios, talvez o restituam à saúde. Vem; para que te demoras? Se eu estivesse no túmulo e ele me chamasse, creio que lhe responderia. Vem, suplico-te; o amor pode ressuscitar os mortos. 
             Aldara - Porque duvidais que a contrição de D. Felipe seja verdadeira? 
             Rainha - Não duvido que se terá arrependido de te ter amado; mas também muitas vezes eu me arrependi de o ter amado, e é o que vês. Segue-me. 
             Aldara - Se me aproximo dele, senhora, será para mais o convencer de que nunca o amei. 
             Rainha - OH! Não, desgraçada; que então morreria mais depressa. 
             Aldara - Permiti-me que me retire. 
             Rainha - Oh! Não sabes?... Alvaro está aqui. 
(Nesse momento sai o Rei sustentado pelos médicos e dirige-se lentamente para o lugar onde está D.Joana.) 
              Aldara - Alvaro! Mais uma razão para me ir embora.
              Rainha - Bem, deixa-me. Se ele morrer, eu...
              Rei - (já ao pé dela e interrompendo-a). Tu hás de viver ainda que eu morra. 
              Rainha e Aldara - (Separando-se) - Oh! 
              Rainha - És tu? Sim, sim, (mudando a expressão do rosto e dando às suas palavras um tom quase jovial); ainda agora estavas a morrer, e já andas daqui para ali como se nada fosse. 
              Rei ( a Aldara) - Senhora, rogo-vos que me deixeis sozinho com D. Joana. 
              Aldara - Obedeço, senhor. 
              Rei - Que ninguém nos venha interromper. (Os médicos retiram-se, depois de o terem ajudado a sentar-se). 
              Rainha - (aparte a Aldara) - Não te vás. 
              Aldara - Fala baixo à Rainha). Ficarei (Sai.) 
A Rainha e o Rei, depois o Almirante, Marliano, D.Alvaro e Aldara, em seguida D. João Manuel, o Marquês de Villena, Vere, prelados, grandes médicos. 
               Rei - Sim; tu hás de viver, porque Deus te manda viver para um povo que em ti só deposita todas as suas esperanças, e para nossos filhos, que hoje necessitam duplamente da tua ternura. E quando Carlos (Carlos V) subir ao trono, dize-lhe que ao pé do túmulo, só pelo remorso é o Rei culpado maior que os demais homens; dize-lhe que se dirige os olhos para um lado, aparece-lhe o mal que fez, com um fantasma implacável; que se dirige para o outro lado, da mesma forma o aterra o bem que estava na sua mão ter feito; que se os volve ao céu, vê entreposto entre a sua culpa e a misericórdia divina o mar de pranto vertido pelo seu povo. Dize-lhe todo o mal que por mim sofreu Castela; mas não lhe digas o mal que a ti te causei; que deteste o monarca, mas que não aborreça o pai. 
                Rainha - E ao que tu vem tudo isso, hoje que começas a restabelecer-te? 
                Rei - Deus concede-me vigor neste momento para que possa confessar-me delinquente e pedir-te perdão. 
                Rainha - Mas se te digo que estás fora de todo o perigo; Marliano ainda há pouco mo garantia. É natural que eu me alarme excessivamente. 
                Rei - Não aumentes a tua amargura reprimindo-a em minha presença. Chora, minha Joana, chora. 
                Rainha - Porque, visto que estás melhor? 
                Rei - E ofendi-te eu! ultrajei a santa que o céu piedoso me tinha dado por companheira! 
                Rainha - O não me querereis a mim e amares outra não é delito certamente. Manda alguém por acaso no seu coração? 
                Rei - Não me desculpes. 
                Rainha - Culpada sou eu, que com os meus ciúmes me empenhei em te atormentar; funesto amor o meu que conspirava contra a tua aventura, porque já muitas vezes to repeti; Aldara mana-te e se te disse o contrário foi porque eu com ameaças a obriguei a que mentisse. Mas não tenhas dúvidas, ama-te, ama-te. 
                Rei - Cala-te, e não aumentes as cruéis angústias que me devoram. (levantando-se).  Quer o céu para meu castigo que quando vá deixar de palpitar, comece o meu coração a idolatrar-te. Vem aos meus braços, santa mártir que eu imolei; permite que ponha os meus lábios sobre a tua puríssima fronte. Mas que digo eu? Vai-te, deixa-me só; não mereço a glória de expirar nos teus braços. Vai-te, e não chores por mim. Vai-te e... Oh! (Deixa-se cair no local, como se começassem a faltar-lhe as forças).  
                Rainha - Filipe! 
                Rei - Chegou a hora da minha morte. 
                Rainha - Enganas-te sem dúvida. 
                Rei - Joana, perdoa-me. (Deixa-se cair no local  aos pés da Rainha).   
                Rainha - Que fazes? que proferes?
                Rei - Põe as tuas mãos sobre a minha cabeça, e perdoa -me, já que tão grande é a tua piedade! 
                Rainha - Eu perdoar-te? 
                Rei - Depressa; não te demores. 
                Rainha - Pois bem, sim, perdoo-te, Felipe da minha alma. (Põe as mãos sobre a cabeça do Rei.) 
                Rei - (Tornando a sentar-se, ajudado pela Rainha.) - O teu perdão talvez me redima. 
                Rainha - Oh! (Afastando-se, como na intenção de pedir socorro.)  
                Rei - Não; não te vás. 
                Rainha - Ânimo, Felipe, coragem; luta ainda com a morte, luta. 
                Rei - Impossível! 
                Rainha - Vive para teu pai, que tanto te quer! 
                Rei - Meu pai!
                Rainha - Para teus filhos, para o teu Carlos, para a tua Isabel, para a tua Maria, e não ignoras que o céu ia conceder-te outra grande aventura; Felipe, se tens coração de pai, vive para ver, para abraçar o filho que trago nas minhas entranhas. 
                Rei - A vida, Senhor, a vida, para a fazer tão venturosa como até aqui a fiz desventurada. Oh! se eu pudesse viver, quanto te amaria! 
               Rainha - Deus eterno! Só tu sabes o que por ele sofri, e agora que me ama, vais matar-mo? Não, mentira, impossível. Não poder, não deves permiti-lo. Seria uma injustiça horrorosa, e tu é justo, Senhor, tu és justo. 
               Rei - Minha Joana! 
               Marliano - (aparecendo à porta da frente. Entram também por ela Aldara, D. Alvaro e o Almirante.) - Vinde, vinde, bem me dizia a mim o coração! 
              Rainha - (Dirigindo-se para ele) Marliano, Marliano do meu coração! 
              Alvaro - Senhor! 
              Rei - D. Alvaro, a vossa mão; fiquemos amigos; velai todos por ela (D. Alvaro, ajoelhando, beija a mão que o Rei lhe estende).  
              Rainha - (Aparte a Marliano) - Mas que é isso? Vai morrer? 
              Marliano (a D. Alvaro e Aldara)  - Levai-a daqui a todo o custo.  (ao Almirante).  Avisai, vós, Almirante.  (Este sai).  
              Alvaro - Vinde, senhora. 
              Aldara - É forçoso que nos sigais. 
              Rainha - Deixai-me, perversos, deixai-me. (Solta-se dos braços de D. Alvaro e de Aldara e corre para junto do Rei. Aperta-lhe uma mão, que dando um grito, solta em seguida) O, que frialdade! A frialdade da morte. Ali a vejo que vem buscá-lo. (põe-se diante do Rei, como se tratasse de interceptar a alguém a passagem e dando sinais de verdadeira demência).
              Rei - Joana! 
              Rainha - Passa, passa através do meu corpo; apodera-se do teu! 
              Rei - Joana, minha Joana! Que horrível castigo! Deus eterno, piedade... perdão!... (Expira).   
              Rainha - Felipe! Felipe! (Arremessa-se sobre o seu corpo).  
              Marliano - (ao Almirante e aos que com ele entram pela porta do fundo). O rei morreu. 
              Rainha - Morreu! (Endireitando-se)  O seu cadáver é meu. Conservá-lo-hei com os beijos da minha boca; regá-lo-hei com as lágrimas dos meus olhos. O morto e eu, viva ainda, seguiremos unidos. Sim, morte implacável, frustrarei o te intento. Todo o teu poder é pouco para o arrancares dos meus braços. Silêncio, senhores, silêncio!... O rei adormeceu. Silêncio!... Não o desperteis. 
               Aldara - Oh, celestial misericórdia! 
               Rainha - Dorme, meu amor; dorme... dorme... 
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BREVE BIOGRAFIA DO AUTOR 
               Manuel Tamayo y baus, foi secretário Real da Academia Espanhola e eminente autor dramático; tem como seu melhor título de glória, Um drama nuevo. Entre as suas outras produções teatrais, citam-se: a tragédia Virginia; Loucura de Amor; Lances de Honor; Lo positivo; etc. Escreveu várias destas obras sob o pseudônimo de Joaquim Estébanez. Quando morreu, era diretor da Biblioteca Nacional de Madri. 
Nicéas Romeo Zanchett  

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