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segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

FAUSTO E MARGARIDA - Por Goethe.

Foi traduzido para o Português, em livro, 
por Antônio Feliciano de Castilho. 
A peça abaixo é uma tradução de Agostinho de Ornellas.
Adaptação e atualização: Nicéas Romeo Zanchett.
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FAUSTO E MARGARIDA
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PRIMEIRA CENA 
Um quarto pequeno e asseado.
Margarida (Entrançando o cabelo) 
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Oque não daria eu se conseguisse
Saber quem foi aquele senhor de hoje. 
Era tão bem parecido; e de alto sangue, 
De certo, que no rosto se lhe lia; 
Nem se outro fosse a tanto se atrevera. 
(Sai em seguida) 
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MEFISTOFELES E FAUSTO 

Mefistofeles -Entra. Devagarinho, bem de manso. 
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Fausto - (Depois de uma pausa) Deixa-me só, te peço. 
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Mefistofeles - (Examinando tudo em volta).Tal asseio.
Não é qualquer mulher que assim o guarda, 
(Sai)
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Fausto Elevando os olhos e correndo-os em torno)
- Crepúsculo suave, sê bem-vindo,
Tu que vagueias neste santuário!
Enche meu coração, pena amorosa, 
Que o orvalho da esperança arfando vives!
Como em torno de mim tudo respira
Repouso, ordem, são contentamento;
Nesta pobreza, que abundância imensa, 
Que bem-aventurança neste cárcere! 
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(Lança-se na cadeira de braços ao pé do leito).
Tu me recebe agora, que os passados, 
Em horas de tristeza ou de alegria, 
Em teus braços abertos acolheste!
Quantas vezes em volta deste trono
Paternal, se juntou risonha chusma
De crianças gentis. Aqui outrora, 
Pelos dons do Natal agradecida, 
Minha amada talvez, com as rubicundas
Faces da infância, depusesse um beijo
Do avô na mão rugosa. Sinto, oh virgem, 
Teu espírito de ordem e vigilância
Sussurrar junto a mim, que te ensinara, 
Com materno cuidado, os dias todos
A estender sobre a mesa o liso pano, 
E até teus pés o chão, de areia
Reluzente cobrir. Oh mão amada, 
Tens divino poder, fazes da choça
Paraíso celeste. 
E aqui? 
(egue uma cortina do leito) 
Eu tremo 
De intensíssimo gosto, horas inteiras
Aqui passar quisera. Natureza, 
Aqui em doces sonhos tu formaste
O anjo à terra vindo. 
Transbordando 
Calor e vida do mimoso seio, 
Aqui dormiu infante e com sagrada
E pura evolução, da divindade
A imagem se perfez, ficou completa. 
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E tu! O que trouxe aqui? Movido 
Como sinto da alma o mais profundo! 
Que buscas? Porque sentes pesaroso
O coração no peito? Pobre Fausto
Não te conheço já. 
Cerca-me acaso
Em encantado ambiente? O meu desejo
Era fácil prazer, e eis-me todo
Em amorosos engolfado...
Das impressões do ar à mercê estamos?.
E se súbito aqui ela aparecesse, 
Bem caro pagarias te arrojo! 
O grande homem, ah, quão pequenino
cairia a seus pés aniquilado. 
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Mefistofeles - Depressa, vejo-a vir ali abaixo. 
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Fausto - Vamo-nos, vamos, nunca cá torno. 
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Mefístofeles - aqui tens um estojo assaz pesado
Que fui buscar algures. Vai-o tu sempre 
Metendo no armário. Em ela o vendo, 
Perde a cabeça; pus aqui coisinhas
Para vencer a outras mais difíceis. 
Crianças são crianças, brinco é brinco. 
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Fausto - Não seu, talvez não deva...
Que perguntas? 
Talvez queiras guardar para ti as jóias? 
Nesse caso aconselho à paixão vossa, 
Que o tempo me poupe e mais trabalho. 
Quero crer que não és um avarento?
Dou tratos ao miolo, ando a cansar-me, - 
(Põe o estojo no armário e fecha-o)
Vamos daqui depressa, vm comigo, - Só para conseguir que a pobre moça
A vosso desejar se ajeite pronto; 
E vós estais aí como se houvésseis 
De ir dar aula, e palpáveis vos surgissem 
Física e Metafísica diante!
Anda daí. 
(Saem)
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Margarida (com o candieiro) - Está abafado, 
Tão quente aqui.  (abre a janela)
E todavia fora 
Não é tanto calor. Não sei que tenho.
Quem me dera que a mãe estivesse aqui em casa. 
Sinto correr-me o corpo um calafrio...
Uma criança sou, tola e medrosa, 
(Canta despindo-se)
Houve outrora um rei em Thule, 
Até à morte constante; 
Uma taça de ouro fino
Lhe deixou morrendo a amante, 
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Nada mais o rei prezava,
Nos banquetes lhe servia; 
Arrasavam-se-lhes os olhos, 
Sempre que dela bebia. 
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Quando estava pra morrer, 
Cidades, reinos contou; 
A seus herdeiros os dava, 
Pra si a taça guardou. 
Sentou-se à mesa ao redor
Seus cavaleiros sem par, 
No salão de seus Avós, 
No castelo ao pé do mar. 
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Lá se ergue o bom Rei, 
Ultimo trago tomou, 
E nas ondas azuladas
A taça de ouro lançou.
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Viu-a cair, afundar-se
E no mar desaparecer...
Os olhos no chão cravou, 
Não tornou mais a beber. 
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(Abre o armário Para guardar o fato e vê a caixa das jóias)
Como vei aqui ter tão lindo estojo? 
De ter fechado o armário estou bem certa, 
Maravilhosos é! Que estará dentro? 
É talvez um pendor sobre o qual hoje
Deu minha mãe dinheiro. Duma fita
Aqui pende a chavinha. Abri-lo quero. 
Que é isto, Deus do céu! Não vi tal nunca! 
Um adereço com que mostrar-se pode
Nos mais solenes dias uma dona!
Deixa ver o colar. Tanta riqueza
De quem será? De quem tão belas jóias? 
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(Enfeita-se com elas e chega-se ao espelho)
Se pudessem ser meus sequer os brincos! 
Em os pondo, pareço logo outra. 
Que te serve a beleza, pobre moça? 
É muito, mas aos homens que lhe importa; 
Quase que mostram dó quando nos gabam. 
Ao ouro tende e do ouro depende
Tudo no mundo, tudo! Ai de nós pobres. 
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SEGUNDA CENA
No jardim 
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(Margarida pelo braço de fausto, Martha com Mefistofeles, passeando)
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Margarida - Bem vejo que o senhor todo é bondade
E abaixar-se quer pra confundir-me. 
Anda tão costumado que viaja
A contentar-se por delicadeza
De pouco. Sinto eu sobejamento
Que minhas pobres falas não divertem
Quem tanto sabe. 
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Fausto  - Um só de teus olhares, 
Uma palavra, muito mais me interessam
Que deste mundo todo a vã ciência, 
(Beija-lhe a mão)
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Margarida - Não faças tal! Como podeis beijá-la? 
É tão grossa, tão rude! Em que trabalhos
Não tenho de lidar o dia todo!
Minha mãe é poupada em demasia. 
(Passam)
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Martha - E vós, senhor, andais sempre em viagens? 
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Mefistofeles - Quão duro é que a isso nos obriguem
Dever e profissão! Com saudade
Às vezes dum lugar nos apartamos
E sem poder ficar! 
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Martha - Nos verdes anos
Cabe bem divagar por esse mundo; 
Mas chega alfim a idade, e à sepultura
Baixar solteiro, só, não fez ainda 
Bem a ninguém. 
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Mefistofeles  - De longe tal futuro.
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Marta 
- Pois em tempo, 
Caro senhor, deveis acautelar-vos.
(Passam)
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Margarida - Sim, mas longe dos olhos serei longe
Também do coração. Em cortesia
Sois mestre, mas amigos tendes tantos
De muito mais engenho que eu coitada. 
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Fausto  - Acredita, querida, o que se chama
Engenho e inteligência, a maioria das vezes
É mera estupidez, louca vaidade; 
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Margarida - O que? 
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Fausto  - Pois a inocência, a singeleza
Jamais conhecerão sua valia? 
Humilde, modéstia, modéstia, dons supremos
Que com amor concede a natureza...
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Margarida - Pensai em mim sequer um instantinho, 
Para pensar em vós sobra-me tempo. 
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Fausto - Estais a muito só? 
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Margarida - Sim; é pequeno
Nosso arranjo caseiro, mas carece 
Quem dele trate sempre. Uma criada
Não temos; varro, coso, o comer faço
E ando dentro e fora noite e dia; 
É minha mãe em todas estas coisas
Tão exigente! Não que ela precisa
Viver tão acanhada. Bem podíamos,
Melhor que muitos, por-nos à vontade; 
Deixou nosso pai bem boa herança
Uma casa e jardim no arrabalde. 
Contudo passo a vida bem tranquila
Agora; meu irmão assentou praça. 
Morreu minha irmãzinha. Duras penas 
Com a criança passei, mas quem mais dera
De novo, tanto a amava. 
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Fausto - Um anjo era
Se parecia contigo. 
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Margarida - Foi criada
Por minhas mãos e tinha-me sincero 
Entranhável amor. Viera ao mundo
Já depois do pai morto; por perdida
Tivemos nossa mãe, tão mal esteve. 
Foi pouco e pouco recobrando as forças,
Mas em amamentar a criança
Nem podia pensar. Assim criei-a
Eu só com leite e água, como filha
Minha que fosse, e ao meu colo o anjo
Sorria, bracejava, ia crescendo. 
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Fausto - Mas também tive horas trabalhosas.
O berço da pequena estava à noite
Ao pé da minha cama, em se mexendo
Acordava-me logo; ora o seu leite
Tinha de dar-lhe e junto a mim deita-la, 
Ou, se não se calava, levantar-me
E pelo quarto andá-la passeando. 
E de manhã bem cedo ao lavadouro
Havia de ir, e à praça, e da cozinha
Tratar, e isto sempre; como hoje
Amanhã outra vez. O ânimo falta
Neste lidar, senhor, algumas vezes, 
Mas descanso e comida melhor sabem.
(Passam)
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Martha - A mulher está pior, não tem partido, 
Um solteirão a custo se converte.
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Mefistofeles - Uma mulher qual sois, bem poderia
Ideias mais sensatas inspirar-me. .
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Martha - Dizei-o francamente, até agora
Nada encontraste? Em parte alguma o vosso
Coração se prendeu?
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Mefistofeles - Um lar que é nosso e uma boa esposa
Valem mais que ouro e pérolas.
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Martha - Se nunca desejastes...
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Mefistofeles - Fui eu sempre
Em toda a parte muito bem recebido. 
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Martha - Perguntava se amastes algum dia
Seriamente?
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Mefistofeles - Ninguém deve atrever-se
A brincar com senhoras. 
Martha - Não me faço 
Entender. 
Mefistofeles - Sinto muito, mas entendo
Que de grande sois dotada.
(Passam)
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Fausto - Conheceste-me ha pouco, anjo adorado, 
Quando entrei no jardim? 
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Margarida - Pus os olhos no chão. 
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Fausto - E tu perdoas
A liberdade que tomei, e quanto
Minha insolência ousou quando saías
Da catedral? 
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Margarida - Fiquei como assombrada. 
Nunca me sucedera tal; não tinha 
Ninguém que me dizer. Aí, eu pensava, 
Teus modos imodestos acharia? 
Parece que lhe veio ao pensamento
Logo, tratar-se com desembaraço.
Confesso-vos porém, não sei que coisa
Logo aqui se moveu em vosso abono; 
Quis-me deveras mal, por não ter força
De mal vos querer a vós. 
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Fausto- Coração, anjo! 
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Margarida - Deixe-me ver. 
(Colhe um malmequer e arranca as folhas uma por uma)
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Fausto - Que fazes? ramalhetes?
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Margarida - Não, estou brincando. 
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Fausto - Que é? 
Margarida - Deixai-me agora, 
Que de mim zombaríeis. 
(Arranca as folhas falando baixo)
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Fausto - Que murmuras? 
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Margarida (a meia voz) - Mal me quer, bem me quer. 
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Fausto- Rosto divino.
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Margarida (Continua) - Mal me quer, bem me quer, mal me quer, - ama-me! 
(Arrancando a última folha com alegria)
Sim, bem me quer! 
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Fausto - Dos céus seja um oráculo 
O que te disse a flor, sim, minha vida, 
Ama-te! entendes o que é que - ele ama-te? 
(Pega-lhe nas mãos)
-
Margarida - Estremeço de gosto. 
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Fausto - Não, não tremas!
O apartar das mãos, os olhos digam
O que inefável é; todo entregar-se
Arroubado em delícia tão intensa
Que deve ser eterna! Sim, eterna! 
O fim dela seria o desespero. 
Sem fim! Sem fim!
(Margarida aperta-lhe as mãos, desprendendo-se e foge, Fausto fica um momento pensativo e segue-a)
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Martha (Entra) - A noite vem chegando. 
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Mefistofeles - É verdade, partamos. 
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Martha - Que mais tempo ficassem, mas a terra
É muito má. Parece que outro ofício
Ninguém tem mais, do que saber da vida
Da vizinhança e os pássaros espreitar-lhe,
E por mais que se faça, não há modo
De escapar às más línguas. O que é feito
Do nosso lindo par?
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Mefistofeles - Lá se sumiram 
Da alameda no fim, quais passarinhos
Que alegres brincam. 
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Martha - Ai, morre por ela. 
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 Mefistofeles - E ela por ele. Assim vai sempre o mundo.
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TERCEIRA CENA 
Na fonte.
Margarida e Elisa (com bilhas)
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Elisa - Não ouviste dizer nada de Bárbara? 
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Margarida - Coisa alguma. Com pouca gente falo. 
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Elisa - Pois é certo, que a mim Sibila e disse,
Lá se perdeu emfim. Eis o que fazem
Bazófias.  
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Margarida - O que foi? 
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Elisa - Por aí corre
Que quando come e bebe a dois sustenta.
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Margarida - Deveras? 
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Elisa - Teve a sorte que merecia; 
Pois se não se largavam nem de noite!
Eram passeios, danças lá na aldeia, 
Ela a ser a primeira em toda a parte, 
E de vinho e pastéis a regalar-se, 
Metera-se em cabeça que era linda
E não tinha vergonha de aceitar-lhe
Presentes. Eram beijos e carícias, 
Mas por fim lá se foi também a honra. 
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Margarida - Coitada! 
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Elisa - Dó não tenhas! Quando à noite
Ficávamos fiando a vir à porta
Nos não deixava a mãe, ela folgava
Ao lado do mante; ao pé da entrada, 
No banco ou nas escuras alamedas, 
Ligeiro lhe corria o doce tempo. 
Pois agora que sofra, e vá na Igreja
Penitência fazer de dó vestida.
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Margarida - Por mulher ele a toma certamente. 
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Elisa - Não há de ser tão tolo. Um moço esperto
Em outro lugar pode ir divertir-se; 
E até já partiu. 
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Margarida - Isso é mal feito. 
Elisa - Ainda que o apanhe paga-o caro!
Arrancam-lhe os rapazes a capela, 
E nós à porta vamos espargir-lhe, 
Palha picada. 
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Margarida  - Como pude outrora
Tão acre censurar, quando uma moça
Se deita a perder! Como bastantes
Palavras não achava contra as faltas
Dos outros! Eram negras ao meus olhos, 
E denegria-as mais, e todavia
denegridas essas me não pareciam. 
benzia-me e fazia-me soberba, -
E agora também sou pecadora. -
Porém, meu deus, o que arrastar-me pôde
Ao mal, era tão doce, tão suave! 
.... 
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QUARTA CENA
Campo
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Fausto e Mefistofeles
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Fausto  - Na miséria! Desesperada! 
Por muito tempo vagueando miseravelmente na terra e emfim presa. Encerrada, como criminosa, num cárcere onde sofre horríveis tormentos, aquela meiga, desditosa criatura. A tanto, a tanto chegou! - É tudo isto me ocultaste, espírito indigno,traiçoeiro! - P-ara aí, pára. Retorce enfurecido esses olhos diabólicos. Pára e desafia-me com  a tua intolerável presença. Presa! Em irreparável desdita. Entregue a ruins espíritos e à despiedada justiça dos homens. E tu, no entanto, embalas-me com as mais desenxabidas distrações, escondes-me a sua dor cada vez mais crua e deixas que pereça sem socorro!   
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Mefistofeles - Não é a primeira. 
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Fausto - Cão! Monstro abominável! Transforma-o,espírito infinito, transforma de novo o verme em cão; dá-lhe a forma sob que folgava de correr de noite diante de mim, rolando-se de baixo dos pés do viandante inofensivo e pendurando-se dos ombros do infeliz que se despenhava. Restitua-lhe a sua forma favorita; que diante de mim roje o ventre na terra e eu calque aos pés o reprovo! - Não é a primeira!  - Horror, horror de nenhuma alma humana concebido, que mais de uma criatura neste abismo de miséria; que a primeira que se estorceu nas angústias da morte, não expiasse, aos olhos do Todo Misericordioso, as culpas de todas as mais. Abala-me até a medula e desgraça desta única, e t ris sossegado do sofrer de milhares!
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Mefistofeles - Ora, aí estamos de novo nos limites da nossa razão onde vós outros, homens, perdeis de todo a cabeça. Para que te associaste conosco, se te falece a necessária força? queres voar sendo sujeito a vertigens? Procuramos-te nós a ti, ou a nós?
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Fausto  - Não ranjas diante de mim estes dentes de fera. Metes-me nojo! Imenso, glorioso espírito, que te dignaste aparcer-me, tu que conheces meu coração e minha alma, porque me encadeias a este infame, que folga com o mal e se regozija com a ruína dos outros? 
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Mefistofeles  - Acabas com isso?
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Fausto - Salva-a, ou desgraçado de ti! Sobre ti caia,por séculos de séculos, a pior das maldições.
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Mefistofeles  - Não posso desfazer-me as algemas vingadores, nem abrir os ferrolhos da prisão. Salva-a? Quem a lançou na perdição? Eu ou tu?
(Fauto olha furioso em roda de si)
Queres deitar mão do raio? Ainda bem que vos não foi dado miseráveis mortais. Aniquilar o inocente que nos resiste, é o modo porque os tiranos se livram da dificuldades.
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Fausto - Leva-me onde ela está. Há de ser salva. 
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Mefistofeles - E o perigo a que te expões? Sabes que naquela cidade cometeste um crime de morte. Sobre o sepulcro da vítima, pairam espíritos vingadores que espreitam o regresso do assassino. 
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Fausto - Mais essa de tua parte? caiam todas as pragas do Universo sobre ti, monstro, te digo, e salva-a. 
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Mefistofeles - Guiar-te-hei, e o que posso fazer, escuta-o. Sou porventura onipotente? Turvarei os sentidos do carcereiro, apodera-te das chaves e salva-a com meios humanos. Ficarei à espera. Estarão prontos os cavalos encantados, levar-vos-ei. Eis o que posso. 
........
QUINTA CENA 
(Cárcere) 
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Fausto - (Com um molho de chaves e uma candeia, diante uma portinha de ferro.) - Insólito terror de mim se apossa; 
Todo o humano sofrer sinto no peito.
Detrás destas muralhas que gotejam, 
A desditosa jaz, e foi seu crime
Uma doce ilusão! Entrar receias? 
Tremes de vê-la? Ânimo se hesitas, 
Angustiosa morte atrais sobre ela.
(pega no ferrolho. Cantam dentro.)
Minha mãe, a meretriz
Que a vida me roubou!
Meu pai, cruel assassino
Que meu corpo devorou! 
Os meus ossos num lugar 
Mui fresco, minha irmãzinha 
Foi piedosa enterrar; 
Fiz logo um passarinho, 
Voo, voo, ando a voar. 
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Fausto - (Abrindo)
Que o amante s escuta não presente, 
E que ouve o tinir dos duros ferros
E da palha o rumor. 
(Entra)
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Margaida - (Escondendo-se no leito) - Ai! Ai! são eles. 
Morte amarga. 
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Fausto - (baixinho) - Sossega, para salvar-te
Eu venho. 
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Margarida - (Estorcendo-se) - Tem piedade, se és um homem
De meu sofrer. 
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Fausto - Despertas com teus gritos,
Os guardas da prisão!
(Pega nas cadeias para abri-las)
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Margarida - (De joelhos)
- Quem te deu, bárbaro, 
Sobre mim tal poder? Já vens buscar-me
À meia noite? Por quem é, condói-te;
Amanhã de manhã não é bastante? 
(Levanta-se) 
Moça tão moça ainda e morrer devo! 
Formosa também fui, minha desgraça
A formosura fez. Tinha a meu lado
Então o amante, abandonou-me agora. 
Desfolhada a capela jaz e as folhas
Despargidas no chão. Mãos violentas
Em mim não ponhas, não te fiz mal nunca; 
Não deixes clamar debalde. Em dias. 
De vida te não vi. 
.
Fausto - Terei eu força
De suportar tal dor? 
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Margarida - Sei que tu podes
Sobre mim tudo. Deixa que amamente
O pequenino. Com amor materno
De noite o acarinhei. Foi-me roubado, 
Atormentar-me querem e levantam-me 
Que o matara eu. Jamais alegre 
Eu tornarei a estar. Trovas me deitam; 
É maldade da gente. Assim acaba
Uma antiga canção; quem os ensina
A dar-lhe tal sentido? 
.
Fausto - (Lança-se de joelhos) - Para salvar-te 
Desta horrenda prisão, a teus pés olha 
Um amante fiel.
. Margarida - (Ajoelhando-se ao lado dele) 
- Ajoelhemos, 
Para rezar aos santos! Olha, ao fundo
Destes degraus e sob o pavimento, 
Ruge o inferno, e um ruído horrendo
Faz o demônio, em cólera bramando.
.
Fausto (Alto)
- Margarida adorada, Margarida!
.
Margarida - (Atenta) - Era a voz do amigo! 
(Levanta-se, as algemas caem)
- Onde está ele? 
Ouvi que me chamava. Eis-me liberta, 
Nada me tolhe os passos! Vou beijar-lhe
A fronte idolatrada, no seu seio
Tranquila repousar. Oh Margarida, 
Lhe ouvi gritar à porta. Entre os lamentos
E o ranger de dentes dos infernos, 
Sua voz conheci, voz que amei tanto!
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Fausto - Sou eu. 
.
Margarida - És tu? oh, outra vez o dize!
(Apertando-o nos braços)
- É ele, é ele, do sofrer que é feito?
Que é feito das algemas, das angústias
Do temeroso cárcere? Salvar-me
Vens, estou salva! Eis ante mim a rua
Onde ver-te logrei a vez primeira, 
E o alegre jardim, onde com Martha
A tua vinda esperava. 
.
Fausto - (Fazendo por levá-la) - Anda comigo.
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Margarida - Espera, estou tão bem onde te tenho. 
(Afaga-o) 
Fausto - Depressa! Se não foges, cruelmente
Havemos de espioná-lo.
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Margarida - Já não sabes 
Beijar-me? Caro amigo, por tão pouco 
Afastado de mim, dos doces beijos
Pudeste-te esquecer? Porque me sinto 
Angustiada agora nos teus braços, 
E tu que dantes ou vendo-te ou lanado-te, 
Até o céu me sentia transportada, 
E tu com beijos quase me abafavas? 
Beija-me ou beijo-te eu. 
(Abraça-o)
Ai estão gelados
E mudos os teus lábios! - Que fizeste
Do amor que me tinhas? - Pois roubaram-no? 
(Afasta-se dele)
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Fausto - Vem, meu amor, anima-te, acompanha-me!
Sempre hei de amar-te com paixão infinda;
Ms vem comigo agora, é quanto peço. 
.
Margarida - (Voltando-se para ele) 
- Pois és tu? És deveras?
.
Fausto - Sou, mas vamos.
.
Margarida - E quebras as cadeias? no teu seio
Recebe-me outra vez? Como é possível
Que te não cause horror? Sabes, amigo, 
A quem vens libertar?
.
Fausto - Anda, que a noite 
já Foge. 
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Margarida - Minha mãe, tirei-lhe a vida. 
Afoguei o meu filho, que foi dado 
A mim e a ti. A ti também. Não posso
Crer ainda que és tu. As mãos me aperta; 
Sonho não é! As tuas mãos querida! 
Ai, estão molhadas, limpa-as, isto é sangue! 
Que fizeste, meu Deus! Peço que metas 
A espada na bainha. 
Fausto - Isso é matar-me, 
O que passou, passou. 
.
 Margarida- Não, viver deves!
As escovas que é mister encomendares, 
E amanhã sem falta, vou dizer-te; 
Dás o melhor lugar à mãe amada, 
Logo ao lado do irmão, de parte um pouco, 
Mas ainda perto, o meu sepulcro seja, 
Descanse o pequenino no meu seio...
E quem mais junto a mim quisera a campa?
Estreitar-me ao teu peito era delícia
Suspirada, porém que já não logro, 
É com esforço que para ti me chego, 
Como se tu cruel me repelisses; 
E todavia olhas-me tão doce, 
Tão piedoso.
.
Fausto - Foge, vem comigo, 
Se julgas que tal sou.
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Margarida - Que daqui saia? 
.
Fausto - Sim, para a liberdade. 
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Margarida - Se o sepulcro 
Me aguarda lá, se lá me espera a morte, 
Vamos! Daqui só sairei para a cova. 
Não vou mais longe. Parte tu, Henrique,
Oxalá que pudesse acompanhar-te. 
.
Fausto - Podes. Basta querer, está aberta a porta. 
.
Margarida - Partir não posso, não me resta esperança. 
De que serve fugir, se me perseguem? 
Mendigar é tão triste, e mais ainda
Com ruim consciência! Em terra estranha 
É tão triste fugir, andar errante, 
E quando nem assim logro escapar-lhes!
.
Fausto - Mas vou contigo.
.
Margarida - Corre, corre, salva 
O desgraçado filho. Pela senda
Que vai pelo ribeiro, além da ponte, 
Do bosque bem no meio, à mão esquerda, 
Junto da prancha que atravessa o tanque! 
Corre que ainda luta que braceja, 
Vê se o salvas, vê.
.
Fausto - Um passo e ficas livre. 
. Margarida - Se tivéssemos 
Passado aquele monte! Numa pedra
Minha mãe está sentada. Horrorizados
Eriçam-se os cabelos. Está sentada 
Minha mãe numa pedra, meneando
A pendida cabeça. Não acena, 
Não nos olha sequer. Pesa-lhe a fronte; 
Do prolongado sono não desperta, 
Dormia porque alegras nós folgávamos. 
Foram tempos felizes! 
.
Fausto - Se não valem 
Para mover-te súplicas nem rogos, 
Vou levar-te daqui. 
.
Margarida - Deixa-me! fôrça
Não consinto, não queiras arrastar-me! 
Em tudo o mais te fiz sempre a vontade. 
.
Fausto - Já aparece o dia Margarida! 
.
Margarida - O dia, raia o dia! O derradeiro!
Devera de ser de meu noivado o dia. 
Que estivesse já com Margarida
Não digas a ninguém. Ai, minha coroa, 
Perdi-a! Ainda nos vemos, não na dança. 
A multidão apinha-se em silêncio, 
As ruas e a praça não lhe bastam; 
Já lá dobram os sinos, já se quebra
A varinha fatal. Ei-los me arrastam
Manietada; o cadafalso subo; 
Sobre o colo de todos a segure
Que meu colo ameaça, se levanta.
A nudez do sepulcro invade a terra!
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Fausto - Maldita a hora em que nasci!
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Mefistofeles (Aparece) - Depressa!
Foge que estás perdido; o tempo gastas
Em tímido hesitar, em vans palavras, -
Já tremem os cavalos, amanhece!
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Margarida - Das entranhas da terra quem surgiu?
É ele, é ele! Expulsa-o. Que procura
Nem santo lugar? Minh'alma busca! 
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Fausto - Hás de viver. 
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Margarida - Meu Deus, toda me entrego
A teu juízo. 
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Mefistofeles - (A Fausto)
- Vem depressa, ou deixo-te
Com ela na prisão. 
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Margarida - Onipotente, 
Sou tua, salva-me. Acudi oh anjos, 
Oh falanges celestes, protegei-me!
Henrique, de ti tremo. 
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Mefistofeles - Foi julgada. 
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Voz (De cima) 
Salvou-se. 
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Mefistofeles (Fausto)
- Vem comigo! 
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(Desaparece com Fausto)
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Uma voz (do  interior, esmorecendo)
- Henrique, Henrique! 
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F I M 

BIOGRAFIA DO AUTOR 
              João Wolfgang Goethe, o mais celebre dos petas alemães, nasceu em Frankfurt sobre o Meno, a 28 de Agosto de 1749, e morreu em Weimar a  22 de Março de 1832. Cursou a Universidade de Lípsia, principiando pouco depois a escrever dramas e poesias. Doutourou-se em Estrasburgo e exerceu a advocacia em Frankfurt. Em 1771 escreveu Götz de Berlichingen, O Caminhante e o Conto de Tempestade do Caminhante. No ano seguinte fixou residência em Wetziar, como advogado, mas teve que fugir dessa cidade por causa de uma intriga de amor. Em 1773 escreveu o Prometheu, Algumas sátiras burlescas, a comédia Erwin e Elmira e principiou O Fausto. Em 1774 Os infortúnios de Werther, e em 1775 estabeleceu-se em Weimar, onde foi conselheiro privado do duque e funcionário público muito útil. Dedicou-se à ciências naturais, fazendo notáveis descobertas. Em 1777 começou Os anos de aprendizagem de Guilherme Meister. Escreveu Efigênia, em prosa, em 1779, e em verso em 1786. Acabou o Egmont em 1787 e o Tasso em 1789. Em 1791 foi diretor do teatro da Corte em Weimar e de 1794 a 1805 associou-se a Schiller, dirigindo ambos a revista literária Horen. Acabou em 1796 Os anos de aprendizagem de Guilherme Meister, em 1797 Hermann e Dorothea, em 1809 As afinidades eletivas, em 1810 A Doutrina da Cor e em 1811 a sua autobiografia Fantasia e verdade. Em 1821 publicou Os anos de viagem de Guilherme Meister. Em 1831 terminou a segunda parte do Fausto. 
Nicéas Romeo Zanchett 

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