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domingo, 21 de dezembro de 2014

O FALSO HÉRCULES - Por Aristófanes

Adaptação e atualização: Nicéas Romeo Zanchett 
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O FALSO HÉRCULES
 (Das rãs) 
CENÁRIO: À porta do palácio de Platão.
Baccho e seu escravo Xanthias vão ao Hades buscar Eurípedes, o último grande artista da tragédia. Baccho, depois de pedir  a Hércules para o encaminhar, está ansioso por rivalizar com ele. 
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Baccho (dirigindo-se para a porta com grande hesitação). - Como é que hei de bater à porta? Como batem os habitantes destes países? 
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Xanthias - Não percas tempo e bate com toda a força que tiveres, se assim como tens o vestuário, também possues a coragem de Hércules.
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Baccho - Eh lá! escravo! 
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Eacho (DE DENTRO) - Quem é? 
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Baccho (disfarçando) - Hércules, o forte. 
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Eacho - (saindo) - Ah! Miserável, impudente, atrevido,celerado dos sacerdotes! Ah! foste tu que perseguiste o nosso cão Cerbero, que eu guardava! Mas hoje tenho-te ao meu alcance, e as pedras negras do Estige e os rochedos do Inacessível Acheronte e os cães errantes do Cocito respondem-me por ti; a Hidra de cem cabeças há de dilacerar-te as ilhargas; a Murena da Tartesia agarrar-se-há aos teus pulmões, e os Gorgonas de Thithrasios farão em pedaços os teus rins e as tuas entranhas ensanguentadas; eu já as vou buscar. 
Eacho parte cheio de fúria e Baccho, de medo, cai no chão).
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Xanthias - Eh! que é lá isso!
Baccho - Deu-me uma coisa! invoca o deus!
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Xanthias - Levanta-te depressa; se um estrangeiro te visse, como havia de vir! 
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Baccho - Ai! eu estou-me a esvair. Põe-me uma esponja sobre o coração.
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Xanthias - Toma lá. (Dá-lhe uma esponja).
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Baccho - Põe tu. 
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Xanthias - Nas onde? Pelos deuses! onde é que estará o teu coração?
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Baccho - De medo caiu no baixo ventre.
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Xanthias - Ah! tu és o maior poltrão dos deuses e dos homens! 
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Baccho - Poltrão? eu! Eu que te pedi uma esponja,  o que nenhum outro teria feito no meu lugar!
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Xanthias - O que? 
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Baccho - Um poltrão, esfixiado pelo cheiro, teria caído de costas: eu levantei-me logo, e demais a mais maguei-me.
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Xanthias - Que valentia, na verdade!
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Baccho - Pois já se v~e. E tu não tremeste ao ouvir as ameaças que lhe proferia? 
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Xanthias (aparentando sangue frio) - Eu? Não me parece!
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Baccho - Pois bem, já que és tão corajoso e tão intrépido, torna-te no que sou, pega nesse cacete e nessa pele de leão; tu não conheces a cor do medo; eu por minha vez, levarei a trouxa. 
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Xanthias - Vá lá, avia-te (trocam os fatos). Eu devo obedecer-te. Contempla agora Hércules (Xanthias); tenho a aparência dum poltrão da tua espécie? 
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Baccho - Não; tu és exatamente o deus de Melite, na alma dum tratante. Vá, dá cá agora a trouxa. 
(Entra uma criada de Proserpina que se dirige logo a Xanthias).  
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Criada - Querido Hércules, entra. Assim que adeusa soube da tua chegada, mandou meter pão no forno, fazer fritos, assar um boi inteiro. Entra, entra depressa. 
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Xanthias   (com dignidade e reserva) - Não, obrigado. 
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Criada - Oh! por Apolo! eu não te deixarei ir. Também te mandou arranjar aves, doces e o melhor dos vinhos. Vamos, entra comigo. 
Xanthias - Não, obrigado. 
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Criada - estás doido? eu já não te largo. Há também em tua honra uma tocadora de flauta,  e duas ou três dançarinas.
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Xantias (com dissimulada emoção) - O que? dançarinas? 
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Criada - Na flor da idade, as coisinhas mais delicadas e encantadoras que os teus olhos hão de ver. Vamos, entra, porque o cozinheiro ia tirar os peixes do lume e estava a por a mesa. 
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Xanthias (com ar de altiva condescendência) - Pois bem, ide dizer às dançarinas que eu vou. Escavo, agarra a trouxa e segue-me. 
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Baccho - Alto lá! Mascarei-te de Hércules por brincadeira, e tomas agora o papel a sério! Basta de tolices, toma lá a bagagem.
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Xanthias - Então pensas tirar-me o que tu próprio me deste? 
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Baccho - Não, não penso nada disso, faço-o. Tira a pele.
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Xanthias - Vêde como me tratam, justos deuses, e sêde juízes!
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Baccho - Que deuses? Tu estás assim parvo, assim louco? Como querias tu, simples mortal, ser filho de Álcme?
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Xanthias - Estás bem, toma. Mas tu hás de ter ainda um dia necessidades de mim, se os deuses quiserem. 
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Baccho - Seria bonito, ver Xanthias, um escravo, repimpado ociosamente em coxins de púrpura, a fazer festas às dançarinas e a pedir- o copo, enquanto eu ficava a apitar, ou o amo celerado me faria saltar os dentes da frente! (Entram duas taberneiras). 
Primeira Taberneiro - Oh! Plathana, Plathana! vem daí! olha o tratante que entrou uma vez na nossa taberna e nos comeu dezesseis pães! 
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Segunda Taberneira - É verdade, é ele próprio! 
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Xanthias - As coisas não correm bem para uma pessoa que eu sei. 
. Primeira Taberneira - E de mais a mais, vinte bocados de carne cozida, de meio abulo cada um. 
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Xanthias - Mas há penalidades...
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Primeira taberneira - E não sei quantos dentes de alho.
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Baccho (com dignidade) - Tu não sabes o que dizes, minha filha. 
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Primeira Taberneira - Ah! tu pensavas que eu não te conhecia, por teres coturnos! E todos os peixes salgados que eu já esquecia! 
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Segunda Taberneira - E o queijo fresco que ele devorou! nem os cestos deixou sequer. Depois, quando lhe pedi dinheiro, pôs-se a fazer-se vermelho, deitando-me uns olhos que metiam medo!
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Xanthias - Pois se ele é assim!
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Segunda Taberneira - E tirou da espada, como um furibundo. 
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 Primeira Taberneira - É verdade, é verdade. 
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Segunda Taberneira - Com medo, subimos para o outro andar, e ele deitou a fugir, levando-nos os cestos!
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Xanthias - Ah! é assim que ele faz sempre! Mas deveis proceder...
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Primeira Taberneira - Vai chamar-me já Cleon, que é o meu advogado. 
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Segunda Taberneira - E se encontrares Hiperbolo, Traze-o contigo; quero dar cabo desse ladrão. 
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Primeira Taberneira - (avançando para Baccho) - Ah! miserável glutão! como eu gostava de te quebrar os queixos que que devoraram as minhas comidas! 
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Segunda Taberneira - E eu de precipitar-te na báratro!
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Primeira Taberneira - E eu cortar-lhe com uma foice esse gorgomilo que me devorou as minhas tripas. Mas vou à procura de Cleon; ainda hoje te vai citar em juízo, e dize adeus à vida! 
(Saem as duas taberneiras). 
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Baccho (num pretenso solilóquio). - Os raios me levem se Xanthias não é meu amigo mais querido. 
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Xanthias - Sim, sim, sei ao que vens. Palavras inúteis; eu já não quero ser Hércules. 
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Baccho - Oh! não digas isso, meu Xanthiazinho! 
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Xanthias - Eu, o filho de Alcmene, eu, um escravo, um mortal? 
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Baccho - Sim, eu sei que estás zangado, e não deixas de ter razão; bate-me até, se queres, que eu não direi. Mas juro-te que, se tornar a exigir esse vestuário, me confundam os maiores suplícios, a mim, a minha mulher, aos meus filhos, e ao remeloso Archidemo. 
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Xanthias - Nessas condições, aceito.  (Entra Eaco seguido de vários agentes).
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Eacho - Prendam-me esse sujeito que roubou o cão, para que ele seja castigado. Despachem-se. 
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Baccho - As coisas não correm bem para uma pessoa que eu bem sei. 
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Xanthias - (numa atitude ameaçadora) - Alto lá! não se cheguem! 
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Eacho - Ah! tu queres resistir? Ditilas, Sceblias, Pardocas, venham pegá-lo! 
. Baccho - Prendê-lo, só porque fez um roubo!
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Xanthias - É um horror!
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Baccho - Uma crueldade revoltante! 
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Xanthias - Por Júpiter, os raios me levem, se eu vim aqui já alguma vez, e se eu te roubei o valor dum alfinete; mas quero proceder generosamente; toma este centavo, submete-o à tortura, e se adquirires a prova de que sou culpado, faze-me morrer. 
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Eacho - E que espécie de torturas? 
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Xanthias - A que te aprouver - o azorrague... a atarraxa... as torturas usuais... a polé... a água - seja o que for - fogo e vinagre - tudo serve  (Pausa curta). O que te peço apenas é que o não castigues com funcho ou com alho novo, como se faz às crianças. 
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Eacho - Pois sim, mas se as pancadas te estropiarem o escravo, pedes-me indenizações. 
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Xanthias - Isso sim! anda, vai submetê-lo à tortura! 
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Eacho - Será aqui mesmo, eu quero que ele fale diante de ti. Vá, põe no chão o teu embrulho, e tem cuidado, não mintas. 
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Baccho - Não consinto que me torturem, porque sou imortal; se o ousas, infeliz de ti!
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Eaco - (a Baccho) - Que dizes tu?
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Baccho - Digo que sou imortal, Baccho, filho de Júpiter, e que esse é que não passa dum escravo. 
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Eacho (a Xanthias) - Ouves o que ele diz? 
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Xanthias - Sim. Mais uma razão para fartá-lo com açoites; se é deus, não sentirá as chicotadas. 
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Baccho (a Xanthias) - Mas então, se pretendes ser deus, porque é que não queres apanhar como eu? 
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Xanthias (a eco) - É justo. Pois bem, aquele que vires primeiro a chorar, crê que não é deus. 
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Eacho - Isso é que é falar com cabeça; tu não recusas o que é justo. Tirem as roupas. 
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Xanthias - Mas como hão de proceder para haver igualdade de circunstâncias? 
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Eacho - É fácil; baterei primeiro num e depois no outro. 
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Xanthias - Muito bem.  (Xanthias põe-se em posição para apanhar as chicotadas). 
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Eacho - Toma. (Bate em Xanthias). 
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Xanthias - Vê se me vez fugir às pancadas. (Não grita nem chora). 
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Eacho - Pronto; já te bati. 
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Xanthias - O que? já me bateste?! 
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Eacho - Ah! é porque não sentiste! Vamos ao outro.  (Bate em Baccho). 
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Baccho - (Fingindo não sentir.) Fase isso depressa.
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Eacho - Mas eu já te bati!

Baccho - Pois não foi isso? Eu não senti absolutamente nada!
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Eacho - Não seu, vá lá! volto ao primeiro. 
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Xanthias - Acaba lá com isso! ah! ah!
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Eacho - Que querem dizer esses ahs ? Fez-te mal? 
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Xanthias - Oh! não! pensava nas festas de Hércules que se celebram em Diomea. 
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Eacho - Que religioso homem! Passo então ao outro.
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Baccho - Oh! oh!
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Eacho - Qie é lá isso? 
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Baccho - Eu vejo além cavaleiros. 
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Eacho - Que estás tu a chorar? 
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Baccho - É porque me cheira aqui a cebola. 

Eacho - Então não te importas com as pancadas? 
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Baccho - Como com com coisa nenhuma. 
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Racho - Então continuemos. A este. 
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Xanthias - Ih! ih!
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Eacho - Que é lá isso? 
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Xanthias - Tirem-me esta espinha. 
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Eacho - O que? Vamos outra vez ao outro.
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Baccho - "Apolo, rei de Delos e de Delehes!"
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Xanthias - (a Eacho) - Ele sentiu; não ouves? 
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Baccho - Não, não! eu citava um verso de Hipponax. 
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Xanthias - Pois bem... Vá, bate na ilharga. 
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Eacho - Não, dá cá o ventre. 
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Baccho - Ó Netuno... 

Xanthias - Ali está alguém que não se acha muito satisfeito. 
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Baccho - ... Que reinas no promontório Egeu e nos abismos do mar azulado! 
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Eacho - Por Ceres, não posso saber qual de vocês é o deus. Mas entrem: o patrão e Proserpina hão de conhecê-los, porque também são deuses. 
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Baccho - Tens razão; mas andarias melhor, se tivesses pensado nisso antes de nos bater. 
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Eacho - Por Júpiter salvador! o teu amo é um homem de bem!
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Xanthias - Um homem de bem! sim, senhor! não sabe senão beber e gozar! 
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Eacho - Ele provou que tu mentias, e não bateu no impudente escravo que ousava dizer-se o senhor. 
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Xanthias - Ah! ele se arrependeria!
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Eacho - Está bem! é uma proposta digna dum escravo; é assim que eu faço também. 
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Xanthias - Como, dize lá?
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Eacho - Todo eu me encho de alegria quando maldigo o meu amo às escondidas. 
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Xanthias - E quando deixas o quarto com o corpo fatinho de pancadaria?
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Eacho - Fico encantado. 
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Xanthias - E quando te fazes importante?
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Eacho - Não conheço nada mais belo. 
Xanthias - Ah! por Júpiter! nós somos irmãos. E quando te pões a escutar o que dizem os patrões?
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Eacho - É mais do que delírio. 
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Xanthias - E quando depois contas lá fora o que ouviste? 
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Eacho - Oh! que prazer sublime!
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Xanthias - Por Febo! dá-me a tua mão; deixa-me abraçar-te, e em nome de Júpiter chicoteado, dize-me o que é que querem dizer esse barulho, esses gritos, essas disputas que ouço lá dentro. 
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Eacho - São Eschilo e Eurípedes. 
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Xanthias - Como? 
Eacho - O caso é grave, muito grave; todo o inferno está em revolução. 
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Xanthias - De que se trata? 
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Eacho - Nós temos aqui uma lei pela qual em todas as altas ciências e artes liberais aquele que vence os seus émulos é sustentado no Pritaneu e senta-se ao lado de Plutão...
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Xanthias - Já sei. 
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Eacho - ... até que venha um outro mais hábil que ele no mesmo gênero; então o primeiro deve ceder o seu lugar. 
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.Xanthias -  E o que é que se importa Eschilo com essa lei? 
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Eacho - Elle ocupava o trono da tragédia, como o primeiro na sua arte. 
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Xanthias - E quem o ocupa agora?
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Eacho - Quando Eurípides para aqui desceu, pôs-se a recitar os seus versos diante dos tratantes, dos ladrões, dos vadios, dos gatunos, dos trapaceiros, que enchem isto; as suas descrições sutis e caprichosas encheram-nos de entusiasmo, e consideraram-no logo como o mais hábil. Então Eurípides, doido de orgulho, apoderou-se do trono onde estava Eschilo. 
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Xanthias - E não o correram à pedra? 
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Eacho - Não; mas o povo pedia em altos gritos que se decidisse por um juízo em regra a qual dos dois pertencia a primeira ordem. 
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Xanthias - Que povo? esse povo de tratantes? 
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Eacho - Os seus clamores elevaram-se até o céu.
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Xanthias - E Eschilo não tinha também partidários? 
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Eacho - Os homens de bem são raros aqui, como na terra. 
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Xanthias - Que tenciona fazer Plutão? 
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Eacho - Abrir imediatamente um concurso; os dois rivais farão as suas provas, e depois segue-se o julgamento.
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Xanthias - E então Sófocles? Não reclamou o trono? 
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Eacho - Não, isso sim! à sua chegada, abraçou Eschilo e apertou-lhe a mão; ele podia tomar assento no trono, Eschilo cedia-lho ; mas ele prefere, pelo que diz Clidemide, servir-lhe de segundo; se Eschilo triunfa fica humildemente no seu lugar; senão, declarou que disputaria o prêmio a Eripides. 
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Xanthias - A luta vai começar. 
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Eacho - É já; aqui mesmo se vai ferir esse estupendo combate. A poesia vai ser posta na balança. 
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Xanthias - Como? pesar a tragédia? 
Eacho - Hão de trazer-se também réguas e compassos para medir as palavras, desses cubos que servem de moldes para tijolos, prumos e níveis; porque Eurípides diz que quer submeter à tortura cada verso e cada palavra. 
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Xanthias - Ou me engano muito, ou Eschilo deve estar furioso.
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Eacho - com a cabeça baixa, ele deitava olhares furibundos. 
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Xanthias - E quem será o Juiz? 
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Eacho - - A escolha será difícil; notou-se que havia falta  de conhecedores. Eschilo recursara os atenienses.
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Xanthias - Achava sem dúvida que entre eles havia muitos larápios.
Eacho - E de mais a mais, pensava que eles tinham o espírito muito banal para julgar o mérito dos petas. Emfim, decidiram-se pelo teu amo, porque ele entende de poesia trágica. Mas, entremos; quando os senhores estão preocupados, tréguas à pancadaria!
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F I M
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BIOGRAFIA DO AUTOR 
                  Aristófanes, o maior poeta cômico da Grécia, nasceu, segundo toda a probabilidade, entre 450 e 446 a.C., e morreu em 380 a.C. Pouco se sabe da sua história pessoal, a não ser as alusões das suas próprias obras. A sua primeira comédia, Os Babilônios, apareceu em 427 a.C., e foi seguida por outras quarenta, das quais só onze chegaram até nós: Os Acharnianos, Os Cavaleiros, As Vespas, A Paz, Lisistrata, Thesmoforiasusae, As rãs, Eclesiazusae e Plutão. Aristófanes é o único representante que até nos chegou da chamada Antiga Comédia de Atenas. 
Nicéas Romeo Zanchett 




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