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quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

O CRIME DE CLITEMNESTRA - Por Eschilo (Ésquilo) - (Do Agamenon)


(Clitemnestra recebe Agamenon no seu regresso do cerco de Troia; este vem acompanhado de Cassandra, filha de Priamo, e prisioneira).
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PRIMEIRA CENA 
Clitemnestra - E agora, meu amado apeia-te do carro; mas não pouses sobre a terra, ó meu rei, esse pé que subjugou Ilion. E vós, escravos, porque tardais? Não vos ordenei já que cobrisses de tapetes o caminho que ele deve percorrer? Apressai-vos; que a púrpura se estenda sob os seus passos; que ele seja dignamente recebido neste palácio onde ninguém o esperava mais ver. O resto diz-me respeito; com o auxílio dos deuses, cumprirei a vontade do destino. 
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Agamenon - Filha de Leda, guarda da minha casa, fizeste-me um belo discurso sobre a minha ausência; ele foi bem comprido!Mas os louvores legítimos são antes aqueles com que os outros nos honram.  Demais, para que tratar-me assim, à maneira das mulheres?  para que me saudar, como um rei bárbaro, com adorações e gritos?  Esses tecidos estendidos sobre a minha passagem fariam de mim um objeto de inveja. É aos deuses que está reservada uma tal homenagem. Um mortal caminhar sobre a púrpura ricamente bordada! Isso não é para mim.  É como homem que me devem honrar, não como deus. Não há mesmo necessidade de tapetes, de preciosos ornamentos, para excitar os murmúrios populares; e depois, a moderação da alma é o dom mais belo do céu. Não chamemos feliz senão àquele que acabou os seus dias numa tranquila prosperidade. Possa eu então, sempre vitorioso,passar minha vida sem desgostos! 
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Clitemnestra - Ah! não resistas ao meu desejo.
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Agamenon - Não, a minha resolução é inabalável. 
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Clitemnestra - É um voto arrancado pelo medo?
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Agamenon - Não é sem razão que assim procedo. 
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Clitemnestra - Que faria Priamo, se vencesse? Que te parece? 
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Agamenon - Teria, segundo penso, caminhado sobre a púrpura. 
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Clitemnestra - Cessa então de temer a censura dos homens. 
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Agamenon - A opinião pública é tão poderosa! 
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Clitemnestra - Quem é invejado não é digno de inveja. 
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Agamenon - A teimosia não fica bem a uma mulher. 
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 Clitemnestra - Mesmo para um vencedor, é belo algumas vezes deixar-se vencer. 
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Agamenon - Tens então grande desejo de vencer? 
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Clitemnestra - Sim; concede-me essa vitória. 
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Agamenon - Bem, que me tirem então estas sandálias... É bom que, quando for a andar sobre estes tecidos de púrpura, nenhum deus do alto do céu me deite um olhar de inveja. Seria uma vergonha calçar aos pés, estragar tesouros, tecidos que custaram tanto. - Mas deixemos este assunto. (mostrando Cassandra). Acolhe com bondade esta estrangeira; aquele que sabe ser senhor com ternura agrada sempre aos deuses; porque ninguém se submete voluntariamente ao jugo da escravatura. Esta cativa que me seguiu, é a flor que escolheram entre os despojos de Troia, é o presente que me deu o exército - Já que mudei de opinião, tenho de obedecer; entro no palácio, vou caminhar sobre a púrpura. 
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Clitemnestra - Ha o mar, e quem o podia esgotar? o mar onde se forma o eterno manancial dessa púrpura tão preciosa, das tintas desses tapetes. O palácio, graças aos deuses, está cheio destes tesouros; a nossa morada, ó rei, não conhece a pobreza. Ah! quantos ricos tecidos eu não consentiria em ver calçar aos pés, se os oráculos o tivessem exigido para regresso desta querida alma! Enquanto a rais vive, a folhagem cresce, e a sua sombra protege a casa dos ardores caniculares. A tua volta ao lar doméstico, a presença do esposo na sua casa, é o raio de sol no inverno, é uma fresca brisa nestes dias em que Júpiter faz vinho de cachos verdes. Júpiter, onipotente Júpiter! pensa no cumprimento dos teus decretos!
(Agamenon e Clitemnestra entram no palácio.) 
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O coro - Donde vem essa imagem que me oprime o coração, que o enche de funestos pressentimentos, esse oráculo que não fui invocar e cuja voz não paguei? Por que é que não posso deitá-lopara longe, como um sonho inexplicável, e deixar vir à minha alma o repouso e a esperança? O tempo correu desde  o dia em que , do alto da proa, a frota guerreira lançou a âncora sobre a areia e correu para Ilion. Os meus olhos noticiam a sua volta; e todavia o meu coração recusa entregar-se completamente à espera; ressoa em mim um canto inspirado, o hino que a lira não acompanha, o canto fúnebre da Erinnis! O grito das entranhas não é vão; estas agitações, estas angústias, são o pressentimento da expiação que se aproxima. Possa o céu desmentir uma parte pelo menos do meu temor, e não cumprir o vaticínio! A saúde mais florescente acaba sempre no meio de dores Inexprimíveis; a doença lá está sempre a ameaçar, vizinha de que nos separa um muro apenas. Um prudente temor sacrifica alguma coisa da carga da opulência; esta perda basta, mesmo ligeira, e a família escapa ao naufrágio apesar do assalto do infortúnio, e o navio não é tragado pelas vagas. Os dons abundantes de Júpiter são o remédio seguro da fome. Mas o negro sangue do assassínio, esse sangue que correu do corpo da vítima, uma vez caído sobre a terra, que milagre o introduziria outra vez nas veias? Júpiter não castigou outrora, sábia providência, aquele cuja arte sabia reanimar os mortos? Dois destinos foram determinados pelos deuses. Ah! se eu pudesse sacrificar um ao outro!
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Clitemnestra (saindo do palco) - Entra conosco, Cassandra. Foi Júpiter quem quis; tu vais, neste palácio, partilhar da fácil condição das nossas numerosas escravas. Desce então do carro, e deixa essa altivez, que te fica agora mal. O filho de Alcmene, ao que se diz, foi vendido como cativo; cedeu à força, resignou-se a sofrer o jugo. Quando a necessidade nos reduz a uma tal condição, senhores ha muito acostumados à opulência são o melhor dos bens. Mas os que acabam de fazer uma feliz colheita,são sempre duros, sempre injustos para os seus escravos. Entre nós tu serás tratado como convém. 
O coro (a Cassandra) - A rainha já te disse claramente o que tinhas a esperar. Obedece, pois. Mas que? tu não queres ouvir-me? 
. Clitemnestra - Se a sua linguagem não é, como a da andorinha, uma linguagem desconhecida e estranha, as minhas palavras penetram com certeza o seu coração, e ela vai obedecer-me. 
O coro (a Cassandra) - Segue-a. Na tua situação não podias ouvir melhores palavras. Obedece, desce do carro. 
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Clitemnestra - Não tenho tempo para estar aqui à espera dela. Já ao pé do lar doméstico se juntam os cordeiros que vamos imolar aos deuses - ação de graças por uma felicidade que não esperávamos. Tu, Cassandra, se queres vir, não tardes. Ou, se não entendes a nossa língua, se as minhas palavras não tem sentido para ti, faze como os bárbaros, responde ao menos por sinais. 
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O coro - A estrangeira tem precisão, ao que parece, dum intérprete. Ela é selvagem, como uma fera que se acaba de apanhar.
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Clitemnestra - Sim, ela está no delírio, é a insensatez que ela escuta, essa mulher que viu tomar a sua cidade, e que trouxeram aqui cativa. Ela não saberá afazer-se ao freio, sem que o tenha coberto duma escuma sangrenta. Mas eu é que não me abaixarei mais a falar-lhe. 
(Entra no palácio) 
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O coro - Tomado pela piedade, não posso testemunhar-lhe cólera. Anda, desventurada, deixa esse carro, cede à necessidade, habitua-se ao jugo! 
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Cassandra - Deuses imortais! deuses imortais! Ah! céu! terra! Apolo! Apolo!
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O coro - Para que esses gritos de dor dirigidos a Loxias? Esse deus não quer lamentações. 
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Cassandra - Deuses imortais! deuses imortais!  Ah! céu! terra! Apolo! Apolo!
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O coro - Ei-la que geme ainda; invoca de novo o deus que não gosta de nos assistir nas lágrimas.
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Cassandra - Apolo! Apolo! Deus que me arrastas! Deus que me perdes! Mais uma vez vou sofrer a tua crueldade! 
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O coro - Diria que quer predizer os males que a esperam. Mesmo escreva, mantem-se na sua alma o sopro divino. 
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Cassandra - Apolo! Apolo! Deus que me arrastas! Deus que me perdes! Ah! para onde me trouxeste tu? para que palácio? 
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O coro - Para o palácio dos Atridas. Se ainda o não sabes, fica-o sabendo agora; é a verdade.
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Cassandra - Ah! palácio odiado dos deuses, cúmplice de tantos assassínios! Cordas fatais! Esposo assassinado! Solo coberto duma chuva sangrenta!
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O coro - A estrangeira tem faro do cão; segue a pista  dum assassino e vai descobri-lo.
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Cassandra - Ah! eu creio nestes testemunhos! essas crianças a quem degolam e que choram; essas carnes que seu pai pôde comer!
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O coro - Sim, aqui tinha chegado até nós essa fama, tu tens o dom dos oráculos. Mas para que precisamos nós de profetas?
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Cassandra - Ai! deuses imortais! o que é que se prepara ainda? Qual é esse novo crime, esse crime terrível que se prepara nesta casa? atentado odiado contra os próprios amigos; chega ser difícil de sarar; o remédio está longe! 
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O coro - Nada percebo desses últimos oráculos; o resto toda a gente sabe. 
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Cassandra - Ah! infeliz, tu vais então perpetrar o crime! Vais fazê-lo entrar no banho, esse esposo que partilhou do teu leito; vais tu própria lavá-lo! - Como acabar? - Depressa será! 
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O coro - Não compreendo mais; esses oráculos estão cercados de enigmas...
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Cassandra - Deuses! deuses! ai! ai! que vejo? - É uma rede do inferno? - Sim, uma rede! é o véu que outrora protegia o sono, é o cúmplice do assassino! Fúrias insaciáveis do sangue desta raça, erguei o grito de triunfo; o execrável sacrifício vai consumar-se! 
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O coro - A que Erinnis te referes? As tuas palavras perturbam a minha alma. O sangue reflui-me para o coração, e gela; é como se uma lança me estivesse a penetrar, é como a nuvem que obscurece os raios de luz duma vida agonizante...
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Cassandra - Ah! ah! lá estão eles! lá estão eles! Afastai o touro para longe da bezerra. - Ela agarra-o, o touro de negros cornos, deita-lhe o laço, fere-o. Ele cai na tina que a água enche, na tina da morte e da traição!
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O coro - Não quero gabar-me de ter habilidade para interpretar oráculos; mas nestes oráculos, entrevejo desgraças. E que oráculo anunciou já algum dia uma felicidade aos mortais? 
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Cassandra - Ai! desgraçada! Que destino o meu! porque também choro e lamento a minha desventura. Desgraçada! aonde me levaste? à morte contigo, sim, à morte!
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O coro - Um furor divino transporta a tua alma; tu cantas o canto da própria desventura; és como a ave de plumagem escura, de acentos infatigáveis, Filomela, que do fundo da sua alma desolada, ergue o seu lamento contínuo; Itis! Itis!
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Cassandra - Ai! ai! sorte feliz a da harmoniosa  Filomela! Os deuses revestiram-na dum corpo alado; a sua vida é doce e sem lágrimas; mas eu terei a morte pelo ferro; eis o meu destino! 
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O coro - Donde vem esses transportes misteriosos, essas angústias sem objeto? Quem conduz assim, a tua marcha profética, através dos sinistros oráculos? 
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Cassandra - Ó núpcias de Páris! núpcias fatais! Ó Scamandro, rio da minha pátria! Outrora, a minha infância passou-se nas tuas margens; e dentro em pouco é sem dúvida nas margens do Cocito, do Acheronte, que ou fazer os meus oráculos! 
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O coro - Ah! essas palavras fazem-me bem entender; uma criança mesmo as compreenderia.Uma mordedura sangrenta rasga-me a alma, alanceia-me o grito gemente do teu infortúnio, o acento do teu sofrimento. 
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Cassandra - Ó fadigas de Ilion! ó sacrifícios que meu pai ofereceu ao pé das muralhas! inúmeras hecatombes! Remédios sem efeito, porque Ilion já não existe, e eu, a sacerdotisa inspirada, também serei morta em pouco!
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O coro - Ah! ps teus discursos não se desmentem! E qual é então esse gênio fatal que se apoderou de ti, que lançou o delírio na tua alma, que te obriga a exalar os acentos do sofrimento, do luto e da morte? Que sucederá a esses preságios? Nada adivinho. 
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Cassandra - Pois bem, o oráculo não mais se mostrará através de véus, como a nova esposa. Ei-lo que vai brilhar à luz do dia, ele se lança, esse vento fatal, para o sol que vai subindo... Não eu não vos falarei mais por enigmas. Um coro não abandona ainda este palácio, coro cujas vozes são harmonias, mas cujos funestos cantos nos gelam o sangue. Ele bebeu sangue humano, para reavivar a sua audácia; dai em diante ela jaz nessa morada, essa multidão desenfreada, essas irmãs, essas Fúrias; ninguém as poderá tirar de la. Foi ai que elas se fixaram, é ai que elas cantam o hino fatal, o crime que produziu tantos crimes! Depois, eles amaldiçoaram, na sua cólera, aquele que profanou o leito de seu irmão. Mas enganei-me por acaso? Sou uma falsa profetisa, uma mendiga faladora que bate às portas? Acredita nas minhas palavras; jura que conheço bem os antigos crimes dessa família, e que eu posso falar neles.
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O coro - E esse juramento será um remédio para os nossos males? Sim, eu admiro-te; tu que viveste para alem-mar numa cidade em que se fala outra língua, e diria-se que viveste perto de nós. 
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Cassandra - Apolo, o deus profeta, fez-me presente da sua arte. 
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O coro - Estaria o deus ferido de amor? 
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Cassandra - Houve tempo em que corava só de o dizer. 
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O coro - Com efeito; quem tudo pode é tentado a não escutar senão o seu desejo.
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Cassandra - Perseguiu-me vivamente, a sua paixão era extrema. 
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O coro - E conferiste-lhe o direito de esposo? 
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Cassandra - Assim prometi a Loxias; mas não cumpri a minha promessa. 
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O coro - Possuías já a esse tempo a arte de adivinhação? 
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Cassandra - Já profetizava aos troianos todas as suas desgraças. 
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O coro - Mas a cólera de Loxias deixou-te impune? 
. Cassandra - Desde a minha mentira, ninguém acreditou mais nos meus oráculos. 
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O coro - E no entanto os teus oráculos parecem-me dignos de fé. 
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Cassandra - Ai! ai! ah! ah! Agita-me o trabalho funesto da adivinhação; o prelúdio do hino de desventura perturba-me a alma. 
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Vês estas crianças sentadas no palácio, semelhantes aos fantasmas dos sonhos? Elas morreram, essas crianças, por culpa de quem as devia amar. Ali estão,tendo nas mãos a sua carne, as suas entranhas, os seus corações; horroroso acepipe, que o pai pôde provar! Mas a atrocidade será vingada; um leão medita a vingança, um leão sem coragem. Ele chafurda no leito conjugal; espreita, no fundo da casa, ai! a chegada do meu senhor, sim, do meu senhor, pois que tenho de me submeter ao jugo da escravatura! Ah! esse chefe dos navios, esse destruidor de Ilion, não sabe o que está por baixo dos longos discursos, dos doces sorrisos da execrável cadela, o horroroso destino que a Fúria lhe prepara na sombra. Uma mulher tem então uma coragem desas! uma mulher assassinar seu esposo! Que nome se deve dar a esse monstro hediondo? Ó serpente de duas cabeças! Scilla, habitante dos rochedos, praga dos marinheiros! sacerdotisa do inferno! É contra os seus que ela exala esse ódio implacável! Oh! como ela riu de alegria, a celerada! Diria que venceu o inimigo, que celebra a sua volta triunfante. Se acho incrédulos, ainda hoje sucederá o que está para acontecer; não tarda muito que os teus olhos vejam o que estou dizendo, e me chames, gemendo, a profetisa terrivelmente verídica. 
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O coro - O festim de Thieste, esse pai que comeu a carne de seus filhos, esse sim, reconheci-o, e estremeci de horror. Mas o resto do teu discurso escapa-me, e perco-lhe o sentido.
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Cassandra - Eu digo-te que vais ver o assassino de Agamenon. 
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O coro - Desgraçada! que dizes? Cala-te!
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Cassandra - Não há remédio; o que tem de acontecer acontecerá! 
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O coro - Mas oxalá não aconteça! 
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Cassandra - Tu fazes votos; mas eles pensam no assassino. 
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O coro - Que homem cometeria essa atrocidade? 
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Cassandra - Tu compreendeste muito mal os meus oráculos. 
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O coro - Não compreendo maquinação. 
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Cassandra - Todavia tu sabes muito bem a língua grega. 
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O coro - Os oráculos de Pithos falam grego também, e contudo são difíceis de compreender. 
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Cassandra - Deuses imortais! que fogo me está abrasando! Apolo! deus destruidor! Ó dor! dor! - Essa leoa de dois pés dormiu com o lobo, na ausência do leão generoso; é ele que me há de matar! Prepara a vingança;  também eu servirei para saciar a sua cólera. Ela diz, afiando o punhal para matar o esposo, que é por me ter trazido, que ele tem de morrer. - Mas para que conservo eu ainda estes vãos ornatos , este cetro, estas grinaldas dos adivinhos que me adornam a cabeça? (Deitando fora o cetro); Hei de quebrar-te, antes de morrer. (Lançando fora as grinaldas); Vá, deixem-me calçá-las aos pés; é o prêmio dos seus benefícios. Levem a outro os tesouros de infortúnio. Vem, Apolo, vem despojar-me em pessoa do manto fatídico. Tu viste-me, na ocasião do cerco, ser o objeto de troça dos meus, apesar de todos esses ornamentos; troças insensatas, já se vê! Chamavam-me vagabunda, como uma bruxa de encruzilhada, e eu sofria a pobreza, a desgraça, a fome. E esse profeta que me fez profetisa, eis a morte para que me levou! Em vez do altar, onde meu pai morreu, espera-me uma mesa de cozinha; é aí que o meu sangue vai correr. E, todavia, os deuses não deixarão impune a minha morte. O nosso vingador virá a seu tempo. Filho fatal, fará pagar bem caro o assassino do pai; exilado hoje, errante e longe da pátria, ele voltará um dia e cumprirá o último assassinato da família. - Ah! para que gemer assim, ficar aqui às portas do palácio! Eu vi Ilion na hora fatal, e eis que se aproxima o juízo dos deuses sobre os que foram senhores na minha pátria! Caminhemos então; tenhamos a coragem de morrer. Muito bem pronunciaram os deuses o sagrado juramento.   Eis-vos, portas do inferno, eu vos saúdo! Oxalá o primeiro golpe seja o golpe mortal!
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O coro - Ó mulher tão desventurada e tão sábia! o teu discurso é prenhe de previsões. Mas se tu sabes a sorte  que te espera, porque é que corres, como abezerra ao apelo dos deuses, assim audaciosamente para o altar? 
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Cassandra - Eu não posso evitar a minha sorte. Ó meus hospedes! o tempo urge. 
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O coro - Morrer em último lugar é sempre ganhar tempo. 
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Cassandra - O dia é chegado; a fuga seria inútil.
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O coro - Crê, é a tua coragem que fez a tua desgraça. 
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Cassandra - Uma tal censura nunca se dirige aos felizes. 
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O coro - Se ao menos fosse uma morte gloriosa, um mortal poderia ainda regozijar-se. 
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Cassandra (marchando para a porta do palácio) - Triste de ti, infeliz pai! Pobres filhos! desgraçados!
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O coro - Que é isso? que receio de faz recuar?
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Cassandra - Ah! ah!
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O coro - Que é isso? Que horror se te apoderou da alma? 
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Cassandra - Esse palácio cheira a sangue e a carnificina. 
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O coro - Não será o cheiro dos sacrifícios que se estão fazendo no lar? 
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Cassandra - Diria-se antes o vapor que exala dos túmulos. 
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O coro - Não é, já se vê, um perfume da Síria. 
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Cassandra - Eu entro; vou ainda ao palácio deplorar o meu destino e o destino de Agamenon;  Vivi já o que tinha a viver. Adeus, meus hospedes! Eu não tremo, como a ave à vista do chamariz. Um dia virá em que a morte me será vingada pela morte duma mulher, em que o sangue dum homem expiará o sangue dum esposo infeliz.  Era então esta hospitalidade que me preparavam; era a morte! 
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. O coro - Ó desgraçada, eu lastimo a sorte que os deuses te revelam! 
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Cassandra - Eu quero dizer ainda uma palavra, mais uma vez lastimo o meu destino. Ó sol! por esta luz que nunca mais verei, foge, eu te conjuro, que os meus inimigos, que os meus assassinos paguem o assassinato duma escrava sem defesa. Ó nada das coisas humanas! Para afugentar a felicidade, basta a vista duma sombra. Basta a fricção duma esponja úmida para fazer desaparecer os sinais; esquecimento que me inspira mais piedade que a perda da felicidade. (Entra no palácio). 
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O coro - Os imortais permitiram a Agamenon que tomasse de assalto a cidade de Priamo; ele entrou em Argos, coberto de glória pelos deuses. Ah! se ele tem de pagar o preço do sangue outrora derramado, se deve morrer porque outros morreram, se um assassino vai vingar outros assassinos, qual é o mortal que depois disto se pode orgulhar de ter nascido sob felizes auspícios? 
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Agamenon (detrás do teatro) - Ah! deuses! derrame um golpe mortal. 
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Primeiro semi-coro - Silêncio! de quem é esta voz? quem é que estão a matar?
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Agamenon - Ah! deuses! deram-me um outro golpe! 
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Segundo semi-coro - Foi o rei que soltou este grito funesto; decerto que o estão matando. Que devemos fazer? 
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Primeiro semi-coro - Gritemos por socorro. 
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Segundo semi-coro - Melhor seria cairmos de repente no palácio e prender os assassinos em flagrante, com o gladio ainda na mão. 
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Primeiro semi-coro - Aprovo esse conselho. Mãos `obra; não há um instante a perder. 
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Segundo semi-coro - Devemos certificar-nos de tudo pelos nossos olhos. 
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Primeiro semi-coro - Ms estamos aqui a perder tempo.
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Segundo semi-coro - Não sei que partido hei de tomar. Demais, vale mais agora deliberar que proceder. 
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Primeiro semi-coro - Não sei de discursos que possam chamar um morto à vida. 
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Segundo semi-coro - Sim; mas passaremos miseravelmente a nossa triste existência obedecendo a tais chefes, a criminosos sujos com o sangue do nosso rei? 
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Primeiro semi-coro - Uma tal sorte é insuportável; prefiro a morte. A morte é mais doce que a vida sob um tirano.
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Segundo semi-coro - Mas, dize-me, esses gemidos provam que o nosso rei já não existe?
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Primeiro semi-coro - Para termos a certeza, é preciso ver com os nossos olhos. 
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Segundo semi-coro - O melhor é esclarecer os fatos e certificar-nos da sorte do Atride. 
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Clitemnestra (aparecendo) - Ainda agora falei largamente, e como convinha à circunstância; agora não corarei de desmentir o meu primeiro discurso. Como, sem a mentira, preparar a ruína dum inimigo que nos parece querido? Ha muito tempo que eu tinha perdido a batalha; há muito tempo também que meditava este novo combate; o inimigo foi vencido; ele caiu, e eu fiquei de pé. Eu tinha preparado tudo, vamos; nem podia fugir nem defender-se. Envolvi-o, como se faz aos peixes, numa rede sem saída; era um rico véu, mas um véu de morte. Duas vezes o firo, duas vezes grita; a força abandona-o, cai. Depois acabou com ele uma terceira punhalada, e Plutão, o guarda subterrâneo dos manes, viu satisfeitos os seus votos. A vítima expira; as convulsões da morte fazem jorrar o sangue das feridas, e o orvalho do homicídio cai em negras gotas sobre mim, o orvalho tão doce ao meu coração como o é para os campos a chuva de Júpiter, na estação em que a espiga cresce. Eis o que se passou; vós que estias nestes lugares, velhos de Argos, partilhai ou condenai a minha alegria, pouco importa; felicito-me pela minha ação.
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O coro - Adiremos a impudência da tua linguagem.  Uma mulher insultar assim seu esposo! 
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Clitemnestra - Tomais-me por uma mulher sem resolução, mas o meu coração não treme. Louvor ou censura, tudo o que dizem de mim me é indiferente (Mostrando  o cadáver de Agamenon). - Eis Agamenon, o meu esposo, e eis a mão que o matou. A obra é duma boa obreira. Tenho dito. 
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O coro - Mulher! que foi o que bebeste ou que comeste que assim te perturbou os sentidos? Osas cumprir o horroroso sacrifício! expor-te às maldições de todo o povo! Objeto do ódio dos cidadãos, tu viverás num eterno exílio. 
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Clitemnestra - Querem que sobre mim caia o ódio dos cidadãos e as maldições populares; e não há uma palavra de censura para esse homem que eu matei. Ele avaliava a vida de sua filha pela dum cordeiro; quando os rebanhos abundavam nas suas pastagens, imolou a sua própria filha, o fruto bem-amado das minhas entranhas - só para acalmar o vento da Thracia! Não era ele que se devia exilar? não era essa a recompensa digna dum tal sacrilégio? Não! é a minha ação que inflama o vosso zelo, é só para mim que os juízes são severos. Pois bem, as ameaças acham-me preparada. Combatamos! Se fordes vencedores, tenho de obedecer; mas se o céu decida o contrário, a desgraça será para vós a tardia mas eficaz lição da prudência. 
O coro - o teu coração é cheio de audácia; o orgulho transparece nos teus discursos; a carnificina embriaga-te; o furor perturba a tua alma. Mas o sangue que mancha a tua face, deve ser vingado. Sim, os teus abandonar-te-ão e a morte será o preço da morte dum esposo. 
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Clitemnestra - Eis, por minha vez, o juramento sagrado que pronuncio: Eu juro pela vingança de minha filha, por vós até Erinnis, que me ajudaste a imolar esse homem, que nunca porei o pé no palácio do Medo, enquanto Egistho atear o fogo do meu lar, enquanto ele me dedicar amor. Egistho é o forte escudo em que a minha audácia confia. Ei-lo aí estendido sob os meus olhos, esse homem que me tornou tão desgraçada; esse homem, as delícias das Chriseis do cerco de Ilion; ele e essa escrava, a fiel companheira do seu leito, e que atravessou os mares com ele! Bela recompensa a que tiveram! Sabeis o destino dele; enquanto a ela, cantou como o cisne o canto gemebundo da sua morte; amante desse homem, morreu  com ele; doce volúpia que subtiliza ainda mais as volúpias dos meus amores! 
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 O coro - Vem, ó morte, apressa-te, não demores o último momento; vem estender sobre os nossos olhos o sono que não tem fim! Já não existe, o senhor que tinha por nós tanta afeição! Aquele que tinha aguentado tantas canseiras por causa duma mulher, a mão duma mulher o roubou à vida! Ah! pérfida Helena, que de guerreiros, sob os muros de Troia, tu só fizeste morrer! E eis ainda que o grande herói, ilustre entre todos, caiu por tua causa; foi por tua causa que ele tinha derramado um sangue inexpiável! Ah! quando se preparava o sacrifício, a Discórdia terrível, no fundo do palácio, meditava a ruína dum esposo! 
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Clitemnestra - Para que afligir-te com o que fiz, invocares a morte, fazeres cair sobre Helena a tua fúria, acusá-la da morte dos heróis? Não, não foi só ela que fez morrer tantos gregos, que causou essas eternas dores. 
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O coro - Ó gênio apegado a uma raça fatal! Uma mulher igual ou então a horrorosa audácia das duas Tantalides!  A tua nova vítima dilacera-me o coração. Ímpia! ela inclina-se sobre o cadáver, como um corvo devorador! envaidece-se, por cantar o hino do triunfo!
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Clitemnestra - Pois bem! tu acusá-lo enfim, o onipotente gênio dessa raça! é ele que nutre nas nossas entranhas a inextinguível sede do sangue antes que uma chaga se feche, já um novo sangue correu. 
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O coro - Sim, esse gênio de que falas, o gênio desta família é cheio duma temível cólera! Deuses imortais! deuses imortais! Ó meu rei, meu rei, como choraste? Com que palavras devemos nós exprimir as saudades da nossa alma? Aí estás, deitado nessa teia de aranha! Ó morte indigna, indigna dum homem livre! Morrer assim numa cilada, morto pelo machado de dois gumes!
Clitemnestra - É minha obra, dizes vós. Pois sim, mas não me chames a esposa de Agamenon. Foi o antigo, o cruel vingador do horrendo banquete que Atreu tinha oferecido a seu irmão; foi ele que tomou a fisionomia da mulher desse morto; foi ele que puniu esse homem; a morte dum guerreiro pagou a das duas crianças. 
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O coro - Tu, tu, inocente desse crime! Onde estão as testemunhas? onde estão elas? Ele ajudou-te, esse fatal gênio que vinga os crimes dos pais? Sim, mas o medonho combate continua, o sangue correrá ainda, derramado pelo parricida; um crime que gelará de horror aquele mesmo que devorou a carne de seus filhos! - Deuses imortais! Ó meu rei, meu rei, como chorar-te? Com que palavras devo exprimir-te as saudades da minha alma? Aí estás, deitado nessa teia de aranha! Ó morte indigna, indigna dum homem livre! Morrer assim numa cilada, morto pelo machado de dois gumes! 
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Clitemnestra - Não, a morte desse homem não é indigna dele. Essa filha, fruto do nosso hímen, essa Ifigênia  tãoadorada, essa sofreu um indigno suplício; mas o suplício dele era merecido. Que se não queixe muito alto nos infernos; imolado pelo gladio, não fez mais do que receber o preço do seu crime. 
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O coro - Que partido tomar? a minha rasão alucina-se! que fazer para impedir a queda da casa dos meus reis? 
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Primeiro semi-coro - Ai! terra, terra! Quem vai enterrar o meu rei? Terás essa coragem, tu a assassina de teu esposo? Ousarás gemer no seu funeral? 
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Segundo semi-coro - Que canto fúnebre ressoará sobre o túmulo desse homem divino? que canto acompanhado de lágrimas, saído dum coração sincero? 
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Clitemnestra - Esse cuidados não vos dizem respeito. Foi às nossas mãos que ele caiu, que ele morre; nós o enterramos. Os seus funerais não ressoarão com os gemidos desolados dos seus; mas Ifigênia, sua filha, cheia de ternura, como é natural, irá sair ao caminho de seu pai e abraçá-lo-á sobre as margens do rápido rio das dores. 
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O coro - À minha censura , ela responde ultrajando a vítima. A! onde pararão tantos crimes? O assassinato é punido pelo assassinato o o sangue é o preço do sangue. Enquanto subsistir Júpiter na duração, esta lei é eterna; Todo o culpado tem o seu castigo. Quem pode, senão pela violência, expulsar para sempre da casa dum pai os legítimos herdeiros? 
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Clitemnestra - As tuas palavras são as do oráculo. Pois bem, eu faço este juramento ao gênio dos Plisthenides: eu submeto-me à lei, custe o que custar. Mas ao menos que esse gênio saia desta residência, que ele imagine uma raça diferente da minha! Chega-me a menor parte dos nossos bens, contanto que eu livre este palácio do furor dos mútuos homicídios.
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Egistho - Ó doce claridade do dia da justiça! Até que enfim posso dizer que há deuses vingadores, que vela, pelas dores humanas! Lá está ele, nesse véu, nesse tecido das Fúrias; lá está estendido! que agradável espetáculo para mim! Lá está Agamenon a expiar o assassinato de seu pai. Sim, Atreu, o rei deste país, o pai deste homem disputou o império de Thieste, meu pai, e seu próprio irmão; exilando-o da sua pátria, expulsou-o de sua casa. o desventurado Thieste voltou ao lar, invocou os direitos da hospitalidade; prometeram-lhe conservar-lhe a vida. O pai desse homem, ímpio Atreu, oferece a meu pai o festim dos hóspedes. Que delicadezas, que atenções a desse pérfido! Preparem-se carnes; é um dia de festa que ele parece querer celebrar, e a carne que serve a Thieste é a carne de seus filhos! Atreu devora os dedos dos pés e das mãos. Os bocados que se não podem conhecer são oferecidos a Thieste, e ele põe-se a comer esse alimento, fatal como vês, para a raça de Atreu. Por fim, reconheceu o estúpido crime. Solta um gemido, rola no chão, vomitando o prato da matança; expõe os Pelópidas ao mais tenebroso destino; atira a mesa com as pernas ao ar, e as suas justas imprecações imploram o destruição de toda a raça de Plisthenes. Eis a razão porque vês diante dos olhos esse cadáver; eis porque esse assassinato foi absolutamente justo. Eu era o terceiro filho de Thieste; muito novo, ainda usava cueiro, fui expulso com meu desventurado pai. Mas eu cresci, a justiça trouxe-me. A minha mão fez-se sentir a esse homem; não estava no lugar em que ele morreu, mas fui eu que urdi a maquinação fatal. E agora até a morte me parecia bela; se eu vejo o inimigo no lago da vingança!
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O coro  - Egistho, juntas ao crime a insolência! Orgulhas-te de ter morto voluntariamente esse herói, de ter concebido o projeto desse execrável assassinato. A tua cabeça responderá por isso! Condenado pelo povo, não tarda que não sejas lapidado. 
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Egistho - E és tu, sentado no último banco dos remadores, que falas assim aos que dirigem a manobra, sentados num banco mais elevado? Velho! é costume dizer-se que burro velho não toma ensino; mas tu verás! Os ferros , os horrores da fome podem ser excelentes mestres, médicos infalíveis, mesmo para a alma dos velhos. Depois disto, não vês ainda o que te espera? Vá, não recalcitres contra o aguilhão; teme um castigo doloroso. 
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O coro ( Clitemnestre) - Ó mulher! eis o que o esperava em sua casa, à volta dos combates! Não te bastava emporcalhar o leito dum esposo; foste tu quem preparaste a morte de teu esposo, do chefe dos guerreiros! 
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Egistho - Essas palavra vão causar-vos muitas lágrimas.  Essa voz tem efeitos contrários da de Orfeu; ele arrastava tudo pelo encanto das suas canções, e vós irritais-nos com latidos insensatos! Mando-vos agrilhoar ; dominados por este modo, mostrareis talvez menos firmeza.
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O coro - O que! pois havia de ver-te senhor dos argivos, tu que preparaste a morte desse herói e que nem a coragem tiveste de executar o crime!  
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Egistho - É evidente que era à sua mulher que competia empregar o ardil. Eu, inimigo de sempre, era suspeito. Senhor do seu poder, vou governar em Argos. Todo aquele que recusar obedecer, carregá-lo-ei de cadeias como a um cavalo fogoso, que se não submete ao freio...
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O coro - Covarde! mas tu nem te atreveste a ferir esse herói com as tuas mãos! Era-te preciso alguém que te ajudasse; foi essa mulher que o matou, essa mulher, o opróbio do meu país e dos deuses Argos! Ah! se Orestes vê ainda em alguma parte a luz do dia, que volte depressa e imole estes dois assassinos!
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Egistho - Já que tais são as vossas ações, as vossas palavras, pois que assim o quereis, ides conhecer daqui a pouco... 
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O coro - Socorro! soldados, meus amigos, aproxima-se o momento! Socorro! desembainhem espadas! 
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 Egistho - Também eu tenho a espada na mão, e saberei morrer!
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O coro - Morre pois; aceitamos o augúrio; interroguemos a sorte dos combates.
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Clitemnestra (a Egistho) - Ó mais querido dos homens, basta de desgraças. Não derramemos mais sangue. Entrai, velhos, cada um nas vossas casas; ninguém vos fará mal. Não cedemos ao destino; o que se fez tinha de ser fatalmente feito. Demais, um castigo seria crueldade;basta a cólera do céu que pesa sobre nós. Tal é o conselho duma mulher. 
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Egistho - Mas então clamarão contra mim esses clamores insensatos! as suas pragas solicitarão os deuses! perderão todo o respeito! insultarão o seu senhor!
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O coro - Nunca! os argivos nunca serão os cortesões dum perverso mortal. 
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Egistho - Qualquer dia terás meu castigo. 
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O coro - Não! Não! o céu favorável há de trazer-nos Orestes. 
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Egistho - Bem sei que um proscrito se entretêm sempre com esperanças. 
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O coro - prossegue; toma o poder, viola a justiça; aproveita; é hoje o teu dia. 
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Egistho - Heis de pagar bem caro essa estúpida insolência! 
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O coro - Triunfa, ostenta os teus encantos, como o galo ao pé da sua galinha. 
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Clitemnestra (a Egistho) - Não dês ouvido a esses vãos latidos. Somos os senhores destes domínios; saberemos mete-los em ordem. 
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F I M 


BREVE BIOGRAFIA DO AUTOR
               Eschilo (Ésquilo), o mais antigo poeta trágico da Grécia, nasceu em Eleusis, no Ático, em 525 a. C. Combateu nas batalhas de Marathona, Salamina e Platéas. Aos 25 anos apareceu com escritor trágico, não obtendo contudo nenhum prêmio até o ano 485 a.C.  Manteve a supremacia até a sua derrota pelo jovem Sófocles; de desgosto retirou-se para Gela, na Sicília em 459 a.C, vindo a morrer ali alguns anos mais tarde. Eschilo é chamado o "pai da tragédia grega". Das suas setenta tragédias, somente existem sete que chegaram aos nossos dias: Os Persas, Os sete contra Thebas, As Suplicantes, Prometeu acorrentado, e a famosa trilogia de Oréstia, compreendendo o Agamenon, As Choeforas  e As Eumeníades. 
Nicéas Romeo Zanchett 

domingo, 21 de dezembro de 2014

O FALSO HÉRCULES - Por Aristófanes

Adaptação e atualização: Nicéas Romeo Zanchett 
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O FALSO HÉRCULES
 (Das rãs) 
CENÁRIO: À porta do palácio de Platão.
Baccho e seu escravo Xanthias vão ao Hades buscar Eurípedes, o último grande artista da tragédia. Baccho, depois de pedir  a Hércules para o encaminhar, está ansioso por rivalizar com ele. 
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Baccho (dirigindo-se para a porta com grande hesitação). - Como é que hei de bater à porta? Como batem os habitantes destes países? 
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Xanthias - Não percas tempo e bate com toda a força que tiveres, se assim como tens o vestuário, também possues a coragem de Hércules.
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Baccho - Eh lá! escravo! 
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Eacho (DE DENTRO) - Quem é? 
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Baccho (disfarçando) - Hércules, o forte. 
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Eacho - (saindo) - Ah! Miserável, impudente, atrevido,celerado dos sacerdotes! Ah! foste tu que perseguiste o nosso cão Cerbero, que eu guardava! Mas hoje tenho-te ao meu alcance, e as pedras negras do Estige e os rochedos do Inacessível Acheronte e os cães errantes do Cocito respondem-me por ti; a Hidra de cem cabeças há de dilacerar-te as ilhargas; a Murena da Tartesia agarrar-se-há aos teus pulmões, e os Gorgonas de Thithrasios farão em pedaços os teus rins e as tuas entranhas ensanguentadas; eu já as vou buscar. 
Eacho parte cheio de fúria e Baccho, de medo, cai no chão).
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Xanthias - Eh! que é lá isso!
Baccho - Deu-me uma coisa! invoca o deus!
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Xanthias - Levanta-te depressa; se um estrangeiro te visse, como havia de vir! 
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Baccho - Ai! eu estou-me a esvair. Põe-me uma esponja sobre o coração.
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Xanthias - Toma lá. (Dá-lhe uma esponja).
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Baccho - Põe tu. 
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Xanthias - Nas onde? Pelos deuses! onde é que estará o teu coração?
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Baccho - De medo caiu no baixo ventre.
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Xanthias - Ah! tu és o maior poltrão dos deuses e dos homens! 
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Baccho - Poltrão? eu! Eu que te pedi uma esponja,  o que nenhum outro teria feito no meu lugar!
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Xanthias - O que? 
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Baccho - Um poltrão, esfixiado pelo cheiro, teria caído de costas: eu levantei-me logo, e demais a mais maguei-me.
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Xanthias - Que valentia, na verdade!
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Baccho - Pois já se v~e. E tu não tremeste ao ouvir as ameaças que lhe proferia? 
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Xanthias (aparentando sangue frio) - Eu? Não me parece!
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Baccho - Pois bem, já que és tão corajoso e tão intrépido, torna-te no que sou, pega nesse cacete e nessa pele de leão; tu não conheces a cor do medo; eu por minha vez, levarei a trouxa. 
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Xanthias - Vá lá, avia-te (trocam os fatos). Eu devo obedecer-te. Contempla agora Hércules (Xanthias); tenho a aparência dum poltrão da tua espécie? 
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Baccho - Não; tu és exatamente o deus de Melite, na alma dum tratante. Vá, dá cá agora a trouxa. 
(Entra uma criada de Proserpina que se dirige logo a Xanthias).  
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Criada - Querido Hércules, entra. Assim que adeusa soube da tua chegada, mandou meter pão no forno, fazer fritos, assar um boi inteiro. Entra, entra depressa. 
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Xanthias   (com dignidade e reserva) - Não, obrigado. 
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Criada - Oh! por Apolo! eu não te deixarei ir. Também te mandou arranjar aves, doces e o melhor dos vinhos. Vamos, entra comigo. 
Xanthias - Não, obrigado. 
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Criada - estás doido? eu já não te largo. Há também em tua honra uma tocadora de flauta,  e duas ou três dançarinas.
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Xantias (com dissimulada emoção) - O que? dançarinas? 
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Criada - Na flor da idade, as coisinhas mais delicadas e encantadoras que os teus olhos hão de ver. Vamos, entra, porque o cozinheiro ia tirar os peixes do lume e estava a por a mesa. 
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Xanthias (com ar de altiva condescendência) - Pois bem, ide dizer às dançarinas que eu vou. Escavo, agarra a trouxa e segue-me. 
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Baccho - Alto lá! Mascarei-te de Hércules por brincadeira, e tomas agora o papel a sério! Basta de tolices, toma lá a bagagem.
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Xanthias - Então pensas tirar-me o que tu próprio me deste? 
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Baccho - Não, não penso nada disso, faço-o. Tira a pele.
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Xanthias - Vêde como me tratam, justos deuses, e sêde juízes!
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Baccho - Que deuses? Tu estás assim parvo, assim louco? Como querias tu, simples mortal, ser filho de Álcme?
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Xanthias - Estás bem, toma. Mas tu hás de ter ainda um dia necessidades de mim, se os deuses quiserem. 
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Baccho - Seria bonito, ver Xanthias, um escravo, repimpado ociosamente em coxins de púrpura, a fazer festas às dançarinas e a pedir- o copo, enquanto eu ficava a apitar, ou o amo celerado me faria saltar os dentes da frente! (Entram duas taberneiras). 
Primeira Taberneiro - Oh! Plathana, Plathana! vem daí! olha o tratante que entrou uma vez na nossa taberna e nos comeu dezesseis pães! 
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Segunda Taberneira - É verdade, é ele próprio! 
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Xanthias - As coisas não correm bem para uma pessoa que eu sei. 
. Primeira Taberneira - E de mais a mais, vinte bocados de carne cozida, de meio abulo cada um. 
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Xanthias - Mas há penalidades...
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Primeira taberneira - E não sei quantos dentes de alho.
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Baccho (com dignidade) - Tu não sabes o que dizes, minha filha. 
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Primeira Taberneira - Ah! tu pensavas que eu não te conhecia, por teres coturnos! E todos os peixes salgados que eu já esquecia! 
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Segunda Taberneira - E o queijo fresco que ele devorou! nem os cestos deixou sequer. Depois, quando lhe pedi dinheiro, pôs-se a fazer-se vermelho, deitando-me uns olhos que metiam medo!
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Xanthias - Pois se ele é assim!
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Segunda Taberneira - E tirou da espada, como um furibundo. 
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 Primeira Taberneira - É verdade, é verdade. 
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Segunda Taberneira - Com medo, subimos para o outro andar, e ele deitou a fugir, levando-nos os cestos!
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Xanthias - Ah! é assim que ele faz sempre! Mas deveis proceder...
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Primeira Taberneira - Vai chamar-me já Cleon, que é o meu advogado. 
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Segunda Taberneira - E se encontrares Hiperbolo, Traze-o contigo; quero dar cabo desse ladrão. 
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Primeira Taberneira - (avançando para Baccho) - Ah! miserável glutão! como eu gostava de te quebrar os queixos que que devoraram as minhas comidas! 
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Segunda Taberneira - E eu de precipitar-te na báratro!
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Primeira Taberneira - E eu cortar-lhe com uma foice esse gorgomilo que me devorou as minhas tripas. Mas vou à procura de Cleon; ainda hoje te vai citar em juízo, e dize adeus à vida! 
(Saem as duas taberneiras). 
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Baccho (num pretenso solilóquio). - Os raios me levem se Xanthias não é meu amigo mais querido. 
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Xanthias - Sim, sim, sei ao que vens. Palavras inúteis; eu já não quero ser Hércules. 
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Baccho - Oh! não digas isso, meu Xanthiazinho! 
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Xanthias - Eu, o filho de Alcmene, eu, um escravo, um mortal? 
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Baccho - Sim, eu sei que estás zangado, e não deixas de ter razão; bate-me até, se queres, que eu não direi. Mas juro-te que, se tornar a exigir esse vestuário, me confundam os maiores suplícios, a mim, a minha mulher, aos meus filhos, e ao remeloso Archidemo. 
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Xanthias - Nessas condições, aceito.  (Entra Eaco seguido de vários agentes).
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Eacho - Prendam-me esse sujeito que roubou o cão, para que ele seja castigado. Despachem-se. 
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Baccho - As coisas não correm bem para uma pessoa que eu bem sei. 
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Xanthias - (numa atitude ameaçadora) - Alto lá! não se cheguem! 
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Eacho - Ah! tu queres resistir? Ditilas, Sceblias, Pardocas, venham pegá-lo! 
. Baccho - Prendê-lo, só porque fez um roubo!
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Xanthias - É um horror!
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Baccho - Uma crueldade revoltante! 
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Xanthias - Por Júpiter, os raios me levem, se eu vim aqui já alguma vez, e se eu te roubei o valor dum alfinete; mas quero proceder generosamente; toma este centavo, submete-o à tortura, e se adquirires a prova de que sou culpado, faze-me morrer. 
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Eacho - E que espécie de torturas? 
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Xanthias - A que te aprouver - o azorrague... a atarraxa... as torturas usuais... a polé... a água - seja o que for - fogo e vinagre - tudo serve  (Pausa curta). O que te peço apenas é que o não castigues com funcho ou com alho novo, como se faz às crianças. 
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Eacho - Pois sim, mas se as pancadas te estropiarem o escravo, pedes-me indenizações. 
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Xanthias - Isso sim! anda, vai submetê-lo à tortura! 
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Eacho - Será aqui mesmo, eu quero que ele fale diante de ti. Vá, põe no chão o teu embrulho, e tem cuidado, não mintas. 
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Baccho - Não consinto que me torturem, porque sou imortal; se o ousas, infeliz de ti!
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Eaco - (a Baccho) - Que dizes tu?
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Baccho - Digo que sou imortal, Baccho, filho de Júpiter, e que esse é que não passa dum escravo. 
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Eacho (a Xanthias) - Ouves o que ele diz? 
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Xanthias - Sim. Mais uma razão para fartá-lo com açoites; se é deus, não sentirá as chicotadas. 
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Baccho (a Xanthias) - Mas então, se pretendes ser deus, porque é que não queres apanhar como eu? 
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Xanthias (a eco) - É justo. Pois bem, aquele que vires primeiro a chorar, crê que não é deus. 
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Eacho - Isso é que é falar com cabeça; tu não recusas o que é justo. Tirem as roupas. 
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Xanthias - Mas como hão de proceder para haver igualdade de circunstâncias? 
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Eacho - É fácil; baterei primeiro num e depois no outro. 
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Xanthias - Muito bem.  (Xanthias põe-se em posição para apanhar as chicotadas). 
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Eacho - Toma. (Bate em Xanthias). 
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Xanthias - Vê se me vez fugir às pancadas. (Não grita nem chora). 
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Eacho - Pronto; já te bati. 
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Xanthias - O que? já me bateste?! 
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Eacho - Ah! é porque não sentiste! Vamos ao outro.  (Bate em Baccho). 
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Baccho - (Fingindo não sentir.) Fase isso depressa.
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Eacho - Mas eu já te bati!

Baccho - Pois não foi isso? Eu não senti absolutamente nada!
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Eacho - Não seu, vá lá! volto ao primeiro. 
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Xanthias - Acaba lá com isso! ah! ah!
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Eacho - Que querem dizer esses ahs ? Fez-te mal? 
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Xanthias - Oh! não! pensava nas festas de Hércules que se celebram em Diomea. 
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Eacho - Que religioso homem! Passo então ao outro.
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Baccho - Oh! oh!
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Eacho - Qie é lá isso? 
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Baccho - Eu vejo além cavaleiros. 
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Eacho - Que estás tu a chorar? 
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Baccho - É porque me cheira aqui a cebola. 

Eacho - Então não te importas com as pancadas? 
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Baccho - Como com com coisa nenhuma. 
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Racho - Então continuemos. A este. 
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Xanthias - Ih! ih!
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Eacho - Que é lá isso? 
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Xanthias - Tirem-me esta espinha. 
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Eacho - O que? Vamos outra vez ao outro.
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Baccho - "Apolo, rei de Delos e de Delehes!"
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Xanthias - (a Eacho) - Ele sentiu; não ouves? 
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Baccho - Não, não! eu citava um verso de Hipponax. 
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Xanthias - Pois bem... Vá, bate na ilharga. 
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Eacho - Não, dá cá o ventre. 
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Baccho - Ó Netuno... 

Xanthias - Ali está alguém que não se acha muito satisfeito. 
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Baccho - ... Que reinas no promontório Egeu e nos abismos do mar azulado! 
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Eacho - Por Ceres, não posso saber qual de vocês é o deus. Mas entrem: o patrão e Proserpina hão de conhecê-los, porque também são deuses. 
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Baccho - Tens razão; mas andarias melhor, se tivesses pensado nisso antes de nos bater. 
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Eacho - Por Júpiter salvador! o teu amo é um homem de bem!
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Xanthias - Um homem de bem! sim, senhor! não sabe senão beber e gozar! 
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Eacho - Ele provou que tu mentias, e não bateu no impudente escravo que ousava dizer-se o senhor. 
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Xanthias - Ah! ele se arrependeria!
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Eacho - Está bem! é uma proposta digna dum escravo; é assim que eu faço também. 
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Xanthias - Como, dize lá?
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Eacho - Todo eu me encho de alegria quando maldigo o meu amo às escondidas. 
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Xanthias - E quando deixas o quarto com o corpo fatinho de pancadaria?
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Eacho - Fico encantado. 
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Xanthias - E quando te fazes importante?
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Eacho - Não conheço nada mais belo. 
Xanthias - Ah! por Júpiter! nós somos irmãos. E quando te pões a escutar o que dizem os patrões?
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Eacho - É mais do que delírio. 
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Xanthias - E quando depois contas lá fora o que ouviste? 
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Eacho - Oh! que prazer sublime!
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Xanthias - Por Febo! dá-me a tua mão; deixa-me abraçar-te, e em nome de Júpiter chicoteado, dize-me o que é que querem dizer esse barulho, esses gritos, essas disputas que ouço lá dentro. 
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Eacho - São Eschilo e Eurípedes. 
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Xanthias - Como? 
Eacho - O caso é grave, muito grave; todo o inferno está em revolução. 
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Xanthias - De que se trata? 
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Eacho - Nós temos aqui uma lei pela qual em todas as altas ciências e artes liberais aquele que vence os seus émulos é sustentado no Pritaneu e senta-se ao lado de Plutão...
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Xanthias - Já sei. 
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Eacho - ... até que venha um outro mais hábil que ele no mesmo gênero; então o primeiro deve ceder o seu lugar. 
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.Xanthias -  E o que é que se importa Eschilo com essa lei? 
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Eacho - Elle ocupava o trono da tragédia, como o primeiro na sua arte. 
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Xanthias - E quem o ocupa agora?
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Eacho - Quando Eurípides para aqui desceu, pôs-se a recitar os seus versos diante dos tratantes, dos ladrões, dos vadios, dos gatunos, dos trapaceiros, que enchem isto; as suas descrições sutis e caprichosas encheram-nos de entusiasmo, e consideraram-no logo como o mais hábil. Então Eurípides, doido de orgulho, apoderou-se do trono onde estava Eschilo. 
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Xanthias - E não o correram à pedra? 
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Eacho - Não; mas o povo pedia em altos gritos que se decidisse por um juízo em regra a qual dos dois pertencia a primeira ordem. 
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Xanthias - Que povo? esse povo de tratantes? 
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Eacho - Os seus clamores elevaram-se até o céu.
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Xanthias - E Eschilo não tinha também partidários? 
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Eacho - Os homens de bem são raros aqui, como na terra. 
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Xanthias - Que tenciona fazer Plutão? 
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Eacho - Abrir imediatamente um concurso; os dois rivais farão as suas provas, e depois segue-se o julgamento.
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Xanthias - E então Sófocles? Não reclamou o trono? 
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Eacho - Não, isso sim! à sua chegada, abraçou Eschilo e apertou-lhe a mão; ele podia tomar assento no trono, Eschilo cedia-lho ; mas ele prefere, pelo que diz Clidemide, servir-lhe de segundo; se Eschilo triunfa fica humildemente no seu lugar; senão, declarou que disputaria o prêmio a Eripides. 
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Xanthias - A luta vai começar. 
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Eacho - É já; aqui mesmo se vai ferir esse estupendo combate. A poesia vai ser posta na balança. 
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Xanthias - Como? pesar a tragédia? 
Eacho - Hão de trazer-se também réguas e compassos para medir as palavras, desses cubos que servem de moldes para tijolos, prumos e níveis; porque Eurípides diz que quer submeter à tortura cada verso e cada palavra. 
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Xanthias - Ou me engano muito, ou Eschilo deve estar furioso.
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Eacho - com a cabeça baixa, ele deitava olhares furibundos. 
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Xanthias - E quem será o Juiz? 
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Eacho - - A escolha será difícil; notou-se que havia falta  de conhecedores. Eschilo recursara os atenienses.
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Xanthias - Achava sem dúvida que entre eles havia muitos larápios.
Eacho - E de mais a mais, pensava que eles tinham o espírito muito banal para julgar o mérito dos petas. Emfim, decidiram-se pelo teu amo, porque ele entende de poesia trágica. Mas, entremos; quando os senhores estão preocupados, tréguas à pancadaria!
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F I M
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BIOGRAFIA DO AUTOR 
                  Aristófanes, o maior poeta cômico da Grécia, nasceu, segundo toda a probabilidade, entre 450 e 446 a.C., e morreu em 380 a.C. Pouco se sabe da sua história pessoal, a não ser as alusões das suas próprias obras. A sua primeira comédia, Os Babilônios, apareceu em 427 a.C., e foi seguida por outras quarenta, das quais só onze chegaram até nós: Os Acharnianos, Os Cavaleiros, As Vespas, A Paz, Lisistrata, Thesmoforiasusae, As rãs, Eclesiazusae e Plutão. Aristófanes é o único representante que até nos chegou da chamada Antiga Comédia de Atenas. 
Nicéas Romeo Zanchett 




segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

FAUSTO E MARGARIDA - Por Goethe.

Foi traduzido para o Português, em livro, 
por Antônio Feliciano de Castilho. 
A peça abaixo é uma tradução de Agostinho de Ornellas.
Adaptação e atualização: Nicéas Romeo Zanchett.
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FAUSTO E MARGARIDA
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PRIMEIRA CENA 
Um quarto pequeno e asseado.
Margarida (Entrançando o cabelo) 
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Oque não daria eu se conseguisse
Saber quem foi aquele senhor de hoje. 
Era tão bem parecido; e de alto sangue, 
De certo, que no rosto se lhe lia; 
Nem se outro fosse a tanto se atrevera. 
(Sai em seguida) 
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MEFISTOFELES E FAUSTO 

Mefistofeles -Entra. Devagarinho, bem de manso. 
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Fausto - (Depois de uma pausa) Deixa-me só, te peço. 
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Mefistofeles - (Examinando tudo em volta).Tal asseio.
Não é qualquer mulher que assim o guarda, 
(Sai)
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Fausto Elevando os olhos e correndo-os em torno)
- Crepúsculo suave, sê bem-vindo,
Tu que vagueias neste santuário!
Enche meu coração, pena amorosa, 
Que o orvalho da esperança arfando vives!
Como em torno de mim tudo respira
Repouso, ordem, são contentamento;
Nesta pobreza, que abundância imensa, 
Que bem-aventurança neste cárcere! 
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(Lança-se na cadeira de braços ao pé do leito).
Tu me recebe agora, que os passados, 
Em horas de tristeza ou de alegria, 
Em teus braços abertos acolheste!
Quantas vezes em volta deste trono
Paternal, se juntou risonha chusma
De crianças gentis. Aqui outrora, 
Pelos dons do Natal agradecida, 
Minha amada talvez, com as rubicundas
Faces da infância, depusesse um beijo
Do avô na mão rugosa. Sinto, oh virgem, 
Teu espírito de ordem e vigilância
Sussurrar junto a mim, que te ensinara, 
Com materno cuidado, os dias todos
A estender sobre a mesa o liso pano, 
E até teus pés o chão, de areia
Reluzente cobrir. Oh mão amada, 
Tens divino poder, fazes da choça
Paraíso celeste. 
E aqui? 
(egue uma cortina do leito) 
Eu tremo 
De intensíssimo gosto, horas inteiras
Aqui passar quisera. Natureza, 
Aqui em doces sonhos tu formaste
O anjo à terra vindo. 
Transbordando 
Calor e vida do mimoso seio, 
Aqui dormiu infante e com sagrada
E pura evolução, da divindade
A imagem se perfez, ficou completa. 
.
E tu! O que trouxe aqui? Movido 
Como sinto da alma o mais profundo! 
Que buscas? Porque sentes pesaroso
O coração no peito? Pobre Fausto
Não te conheço já. 
Cerca-me acaso
Em encantado ambiente? O meu desejo
Era fácil prazer, e eis-me todo
Em amorosos engolfado...
Das impressões do ar à mercê estamos?.
E se súbito aqui ela aparecesse, 
Bem caro pagarias te arrojo! 
O grande homem, ah, quão pequenino
cairia a seus pés aniquilado. 
.
Mefistofeles - Depressa, vejo-a vir ali abaixo. 
.
Fausto - Vamo-nos, vamos, nunca cá torno. 
.
Mefístofeles - aqui tens um estojo assaz pesado
Que fui buscar algures. Vai-o tu sempre 
Metendo no armário. Em ela o vendo, 
Perde a cabeça; pus aqui coisinhas
Para vencer a outras mais difíceis. 
Crianças são crianças, brinco é brinco. 
.
Fausto - Não seu, talvez não deva...
Que perguntas? 
Talvez queiras guardar para ti as jóias? 
Nesse caso aconselho à paixão vossa, 
Que o tempo me poupe e mais trabalho. 
Quero crer que não és um avarento?
Dou tratos ao miolo, ando a cansar-me, - 
(Põe o estojo no armário e fecha-o)
Vamos daqui depressa, vm comigo, - Só para conseguir que a pobre moça
A vosso desejar se ajeite pronto; 
E vós estais aí como se houvésseis 
De ir dar aula, e palpáveis vos surgissem 
Física e Metafísica diante!
Anda daí. 
(Saem)
.
Margarida (com o candieiro) - Está abafado, 
Tão quente aqui.  (abre a janela)
E todavia fora 
Não é tanto calor. Não sei que tenho.
Quem me dera que a mãe estivesse aqui em casa. 
Sinto correr-me o corpo um calafrio...
Uma criança sou, tola e medrosa, 
(Canta despindo-se)
Houve outrora um rei em Thule, 
Até à morte constante; 
Uma taça de ouro fino
Lhe deixou morrendo a amante, 
.
Nada mais o rei prezava,
Nos banquetes lhe servia; 
Arrasavam-se-lhes os olhos, 
Sempre que dela bebia. 
.
Quando estava pra morrer, 
Cidades, reinos contou; 
A seus herdeiros os dava, 
Pra si a taça guardou. 
Sentou-se à mesa ao redor
Seus cavaleiros sem par, 
No salão de seus Avós, 
No castelo ao pé do mar. 
.
Lá se ergue o bom Rei, 
Ultimo trago tomou, 
E nas ondas azuladas
A taça de ouro lançou.
.
Viu-a cair, afundar-se
E no mar desaparecer...
Os olhos no chão cravou, 
Não tornou mais a beber. 
.
(Abre o armário Para guardar o fato e vê a caixa das jóias)
Como vei aqui ter tão lindo estojo? 
De ter fechado o armário estou bem certa, 
Maravilhosos é! Que estará dentro? 
É talvez um pendor sobre o qual hoje
Deu minha mãe dinheiro. Duma fita
Aqui pende a chavinha. Abri-lo quero. 
Que é isto, Deus do céu! Não vi tal nunca! 
Um adereço com que mostrar-se pode
Nos mais solenes dias uma dona!
Deixa ver o colar. Tanta riqueza
De quem será? De quem tão belas jóias? 
.
(Enfeita-se com elas e chega-se ao espelho)
Se pudessem ser meus sequer os brincos! 
Em os pondo, pareço logo outra. 
Que te serve a beleza, pobre moça? 
É muito, mas aos homens que lhe importa; 
Quase que mostram dó quando nos gabam. 
Ao ouro tende e do ouro depende
Tudo no mundo, tudo! Ai de nós pobres. 
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SEGUNDA CENA
No jardim 
.
(Margarida pelo braço de fausto, Martha com Mefistofeles, passeando)
.
Margarida - Bem vejo que o senhor todo é bondade
E abaixar-se quer pra confundir-me. 
Anda tão costumado que viaja
A contentar-se por delicadeza
De pouco. Sinto eu sobejamento
Que minhas pobres falas não divertem
Quem tanto sabe. 
.
Fausto  - Um só de teus olhares, 
Uma palavra, muito mais me interessam
Que deste mundo todo a vã ciência, 
(Beija-lhe a mão)
.
Margarida - Não faças tal! Como podeis beijá-la? 
É tão grossa, tão rude! Em que trabalhos
Não tenho de lidar o dia todo!
Minha mãe é poupada em demasia. 
(Passam)
.
Martha - E vós, senhor, andais sempre em viagens? 
.
Mefistofeles - Quão duro é que a isso nos obriguem
Dever e profissão! Com saudade
Às vezes dum lugar nos apartamos
E sem poder ficar! 
.
Martha - Nos verdes anos
Cabe bem divagar por esse mundo; 
Mas chega alfim a idade, e à sepultura
Baixar solteiro, só, não fez ainda 
Bem a ninguém. 
.
Mefistofeles  - De longe tal futuro.
.
Marta 
- Pois em tempo, 
Caro senhor, deveis acautelar-vos.
(Passam)
.
Margarida - Sim, mas longe dos olhos serei longe
Também do coração. Em cortesia
Sois mestre, mas amigos tendes tantos
De muito mais engenho que eu coitada. 
.
Fausto  - Acredita, querida, o que se chama
Engenho e inteligência, a maioria das vezes
É mera estupidez, louca vaidade; 
.
Margarida - O que? 
.
Fausto  - Pois a inocência, a singeleza
Jamais conhecerão sua valia? 
Humilde, modéstia, modéstia, dons supremos
Que com amor concede a natureza...
.
Margarida - Pensai em mim sequer um instantinho, 
Para pensar em vós sobra-me tempo. 
.
Fausto - Estais a muito só? 
.
Margarida - Sim; é pequeno
Nosso arranjo caseiro, mas carece 
Quem dele trate sempre. Uma criada
Não temos; varro, coso, o comer faço
E ando dentro e fora noite e dia; 
É minha mãe em todas estas coisas
Tão exigente! Não que ela precisa
Viver tão acanhada. Bem podíamos,
Melhor que muitos, por-nos à vontade; 
Deixou nosso pai bem boa herança
Uma casa e jardim no arrabalde. 
Contudo passo a vida bem tranquila
Agora; meu irmão assentou praça. 
Morreu minha irmãzinha. Duras penas 
Com a criança passei, mas quem mais dera
De novo, tanto a amava. 
.
Fausto - Um anjo era
Se parecia contigo. 
.
Margarida - Foi criada
Por minhas mãos e tinha-me sincero 
Entranhável amor. Viera ao mundo
Já depois do pai morto; por perdida
Tivemos nossa mãe, tão mal esteve. 
Foi pouco e pouco recobrando as forças,
Mas em amamentar a criança
Nem podia pensar. Assim criei-a
Eu só com leite e água, como filha
Minha que fosse, e ao meu colo o anjo
Sorria, bracejava, ia crescendo. 
.
Fausto - Mas também tive horas trabalhosas.
O berço da pequena estava à noite
Ao pé da minha cama, em se mexendo
Acordava-me logo; ora o seu leite
Tinha de dar-lhe e junto a mim deita-la, 
Ou, se não se calava, levantar-me
E pelo quarto andá-la passeando. 
E de manhã bem cedo ao lavadouro
Havia de ir, e à praça, e da cozinha
Tratar, e isto sempre; como hoje
Amanhã outra vez. O ânimo falta
Neste lidar, senhor, algumas vezes, 
Mas descanso e comida melhor sabem.
(Passam)
.
Martha - A mulher está pior, não tem partido, 
Um solteirão a custo se converte.
.
Mefistofeles - Uma mulher qual sois, bem poderia
Ideias mais sensatas inspirar-me. .
.
Martha - Dizei-o francamente, até agora
Nada encontraste? Em parte alguma o vosso
Coração se prendeu?
.
Mefistofeles - Um lar que é nosso e uma boa esposa
Valem mais que ouro e pérolas.
.
Martha - Se nunca desejastes...
.
Mefistofeles - Fui eu sempre
Em toda a parte muito bem recebido. 
.
Martha - Perguntava se amastes algum dia
Seriamente?
.
Mefistofeles - Ninguém deve atrever-se
A brincar com senhoras. 
Martha - Não me faço 
Entender. 
Mefistofeles - Sinto muito, mas entendo
Que de grande sois dotada.
(Passam)
.
Fausto - Conheceste-me ha pouco, anjo adorado, 
Quando entrei no jardim? 
.
Margarida - Pus os olhos no chão. 
.
Fausto - E tu perdoas
A liberdade que tomei, e quanto
Minha insolência ousou quando saías
Da catedral? 
.
Margarida - Fiquei como assombrada. 
Nunca me sucedera tal; não tinha 
Ninguém que me dizer. Aí, eu pensava, 
Teus modos imodestos acharia? 
Parece que lhe veio ao pensamento
Logo, tratar-se com desembaraço.
Confesso-vos porém, não sei que coisa
Logo aqui se moveu em vosso abono; 
Quis-me deveras mal, por não ter força
De mal vos querer a vós. 
.
Fausto- Coração, anjo! 
.
Margarida - Deixe-me ver. 
(Colhe um malmequer e arranca as folhas uma por uma)
.
Fausto - Que fazes? ramalhetes?
.
Margarida - Não, estou brincando. 
.
Fausto - Que é? 
Margarida - Deixai-me agora, 
Que de mim zombaríeis. 
(Arranca as folhas falando baixo)
.
Fausto - Que murmuras? 
.
Margarida (a meia voz) - Mal me quer, bem me quer. 
.
Fausto- Rosto divino.
.
Margarida (Continua) - Mal me quer, bem me quer, mal me quer, - ama-me! 
(Arrancando a última folha com alegria)
Sim, bem me quer! 
.
Fausto - Dos céus seja um oráculo 
O que te disse a flor, sim, minha vida, 
Ama-te! entendes o que é que - ele ama-te? 
(Pega-lhe nas mãos)
-
Margarida - Estremeço de gosto. 
.
Fausto - Não, não tremas!
O apartar das mãos, os olhos digam
O que inefável é; todo entregar-se
Arroubado em delícia tão intensa
Que deve ser eterna! Sim, eterna! 
O fim dela seria o desespero. 
Sem fim! Sem fim!
(Margarida aperta-lhe as mãos, desprendendo-se e foge, Fausto fica um momento pensativo e segue-a)
.
Martha (Entra) - A noite vem chegando. 
.
Mefistofeles - É verdade, partamos. 
.
Martha - Que mais tempo ficassem, mas a terra
É muito má. Parece que outro ofício
Ninguém tem mais, do que saber da vida
Da vizinhança e os pássaros espreitar-lhe,
E por mais que se faça, não há modo
De escapar às más línguas. O que é feito
Do nosso lindo par?
.
Mefistofeles - Lá se sumiram 
Da alameda no fim, quais passarinhos
Que alegres brincam. 
.
Martha - Ai, morre por ela. 
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 Mefistofeles - E ela por ele. Assim vai sempre o mundo.
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TERCEIRA CENA 
Na fonte.
Margarida e Elisa (com bilhas)
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Elisa - Não ouviste dizer nada de Bárbara? 
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Margarida - Coisa alguma. Com pouca gente falo. 
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Elisa - Pois é certo, que a mim Sibila e disse,
Lá se perdeu emfim. Eis o que fazem
Bazófias.  
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Margarida - O que foi? 
.
Elisa - Por aí corre
Que quando come e bebe a dois sustenta.
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Margarida - Deveras? 
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Elisa - Teve a sorte que merecia; 
Pois se não se largavam nem de noite!
Eram passeios, danças lá na aldeia, 
Ela a ser a primeira em toda a parte, 
E de vinho e pastéis a regalar-se, 
Metera-se em cabeça que era linda
E não tinha vergonha de aceitar-lhe
Presentes. Eram beijos e carícias, 
Mas por fim lá se foi também a honra. 
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Margarida - Coitada! 
.
Elisa - Dó não tenhas! Quando à noite
Ficávamos fiando a vir à porta
Nos não deixava a mãe, ela folgava
Ao lado do mante; ao pé da entrada, 
No banco ou nas escuras alamedas, 
Ligeiro lhe corria o doce tempo. 
Pois agora que sofra, e vá na Igreja
Penitência fazer de dó vestida.
.
Margarida - Por mulher ele a toma certamente. 
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Elisa - Não há de ser tão tolo. Um moço esperto
Em outro lugar pode ir divertir-se; 
E até já partiu. 
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Margarida - Isso é mal feito. 
Elisa - Ainda que o apanhe paga-o caro!
Arrancam-lhe os rapazes a capela, 
E nós à porta vamos espargir-lhe, 
Palha picada. 
.
Margarida  - Como pude outrora
Tão acre censurar, quando uma moça
Se deita a perder! Como bastantes
Palavras não achava contra as faltas
Dos outros! Eram negras ao meus olhos, 
E denegria-as mais, e todavia
denegridas essas me não pareciam. 
benzia-me e fazia-me soberba, -
E agora também sou pecadora. -
Porém, meu deus, o que arrastar-me pôde
Ao mal, era tão doce, tão suave! 
.... 
.
QUARTA CENA
Campo
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Fausto e Mefistofeles
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Fausto  - Na miséria! Desesperada! 
Por muito tempo vagueando miseravelmente na terra e emfim presa. Encerrada, como criminosa, num cárcere onde sofre horríveis tormentos, aquela meiga, desditosa criatura. A tanto, a tanto chegou! - É tudo isto me ocultaste, espírito indigno,traiçoeiro! - P-ara aí, pára. Retorce enfurecido esses olhos diabólicos. Pára e desafia-me com  a tua intolerável presença. Presa! Em irreparável desdita. Entregue a ruins espíritos e à despiedada justiça dos homens. E tu, no entanto, embalas-me com as mais desenxabidas distrações, escondes-me a sua dor cada vez mais crua e deixas que pereça sem socorro!   
.
Mefistofeles - Não é a primeira. 
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Fausto - Cão! Monstro abominável! Transforma-o,espírito infinito, transforma de novo o verme em cão; dá-lhe a forma sob que folgava de correr de noite diante de mim, rolando-se de baixo dos pés do viandante inofensivo e pendurando-se dos ombros do infeliz que se despenhava. Restitua-lhe a sua forma favorita; que diante de mim roje o ventre na terra e eu calque aos pés o reprovo! - Não é a primeira!  - Horror, horror de nenhuma alma humana concebido, que mais de uma criatura neste abismo de miséria; que a primeira que se estorceu nas angústias da morte, não expiasse, aos olhos do Todo Misericordioso, as culpas de todas as mais. Abala-me até a medula e desgraça desta única, e t ris sossegado do sofrer de milhares!
.
Mefistofeles - Ora, aí estamos de novo nos limites da nossa razão onde vós outros, homens, perdeis de todo a cabeça. Para que te associaste conosco, se te falece a necessária força? queres voar sendo sujeito a vertigens? Procuramos-te nós a ti, ou a nós?
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Fausto  - Não ranjas diante de mim estes dentes de fera. Metes-me nojo! Imenso, glorioso espírito, que te dignaste aparcer-me, tu que conheces meu coração e minha alma, porque me encadeias a este infame, que folga com o mal e se regozija com a ruína dos outros? 
.
Mefistofeles  - Acabas com isso?
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Fausto - Salva-a, ou desgraçado de ti! Sobre ti caia,por séculos de séculos, a pior das maldições.
.
Mefistofeles  - Não posso desfazer-me as algemas vingadores, nem abrir os ferrolhos da prisão. Salva-a? Quem a lançou na perdição? Eu ou tu?
(Fauto olha furioso em roda de si)
Queres deitar mão do raio? Ainda bem que vos não foi dado miseráveis mortais. Aniquilar o inocente que nos resiste, é o modo porque os tiranos se livram da dificuldades.
.
Fausto - Leva-me onde ela está. Há de ser salva. 
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Mefistofeles - E o perigo a que te expões? Sabes que naquela cidade cometeste um crime de morte. Sobre o sepulcro da vítima, pairam espíritos vingadores que espreitam o regresso do assassino. 
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Fausto - Mais essa de tua parte? caiam todas as pragas do Universo sobre ti, monstro, te digo, e salva-a. 
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Mefistofeles - Guiar-te-hei, e o que posso fazer, escuta-o. Sou porventura onipotente? Turvarei os sentidos do carcereiro, apodera-te das chaves e salva-a com meios humanos. Ficarei à espera. Estarão prontos os cavalos encantados, levar-vos-ei. Eis o que posso. 
........
QUINTA CENA 
(Cárcere) 
.
Fausto - (Com um molho de chaves e uma candeia, diante uma portinha de ferro.) - Insólito terror de mim se apossa; 
Todo o humano sofrer sinto no peito.
Detrás destas muralhas que gotejam, 
A desditosa jaz, e foi seu crime
Uma doce ilusão! Entrar receias? 
Tremes de vê-la? Ânimo se hesitas, 
Angustiosa morte atrais sobre ela.
(pega no ferrolho. Cantam dentro.)
Minha mãe, a meretriz
Que a vida me roubou!
Meu pai, cruel assassino
Que meu corpo devorou! 
Os meus ossos num lugar 
Mui fresco, minha irmãzinha 
Foi piedosa enterrar; 
Fiz logo um passarinho, 
Voo, voo, ando a voar. 
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Fausto - (Abrindo)
Que o amante s escuta não presente, 
E que ouve o tinir dos duros ferros
E da palha o rumor. 
(Entra)
.
Margaida - (Escondendo-se no leito) - Ai! Ai! são eles. 
Morte amarga. 
.
Fausto - (baixinho) - Sossega, para salvar-te
Eu venho. 
.
Margarida - (Estorcendo-se) - Tem piedade, se és um homem
De meu sofrer. 
.
Fausto - Despertas com teus gritos,
Os guardas da prisão!
(Pega nas cadeias para abri-las)
.
Margarida - (De joelhos)
- Quem te deu, bárbaro, 
Sobre mim tal poder? Já vens buscar-me
À meia noite? Por quem é, condói-te;
Amanhã de manhã não é bastante? 
(Levanta-se) 
Moça tão moça ainda e morrer devo! 
Formosa também fui, minha desgraça
A formosura fez. Tinha a meu lado
Então o amante, abandonou-me agora. 
Desfolhada a capela jaz e as folhas
Despargidas no chão. Mãos violentas
Em mim não ponhas, não te fiz mal nunca; 
Não deixes clamar debalde. Em dias. 
De vida te não vi. 
.
Fausto - Terei eu força
De suportar tal dor? 
.
Margarida - Sei que tu podes
Sobre mim tudo. Deixa que amamente
O pequenino. Com amor materno
De noite o acarinhei. Foi-me roubado, 
Atormentar-me querem e levantam-me 
Que o matara eu. Jamais alegre 
Eu tornarei a estar. Trovas me deitam; 
É maldade da gente. Assim acaba
Uma antiga canção; quem os ensina
A dar-lhe tal sentido? 
.
Fausto - (Lança-se de joelhos) - Para salvar-te 
Desta horrenda prisão, a teus pés olha 
Um amante fiel.
. Margarida - (Ajoelhando-se ao lado dele) 
- Ajoelhemos, 
Para rezar aos santos! Olha, ao fundo
Destes degraus e sob o pavimento, 
Ruge o inferno, e um ruído horrendo
Faz o demônio, em cólera bramando.
.
Fausto (Alto)
- Margarida adorada, Margarida!
.
Margarida - (Atenta) - Era a voz do amigo! 
(Levanta-se, as algemas caem)
- Onde está ele? 
Ouvi que me chamava. Eis-me liberta, 
Nada me tolhe os passos! Vou beijar-lhe
A fronte idolatrada, no seu seio
Tranquila repousar. Oh Margarida, 
Lhe ouvi gritar à porta. Entre os lamentos
E o ranger de dentes dos infernos, 
Sua voz conheci, voz que amei tanto!
.
Fausto - Sou eu. 
.
Margarida - És tu? oh, outra vez o dize!
(Apertando-o nos braços)
- É ele, é ele, do sofrer que é feito?
Que é feito das algemas, das angústias
Do temeroso cárcere? Salvar-me
Vens, estou salva! Eis ante mim a rua
Onde ver-te logrei a vez primeira, 
E o alegre jardim, onde com Martha
A tua vinda esperava. 
.
Fausto - (Fazendo por levá-la) - Anda comigo.
.
Margarida - Espera, estou tão bem onde te tenho. 
(Afaga-o) 
Fausto - Depressa! Se não foges, cruelmente
Havemos de espioná-lo.
.
Margarida - Já não sabes 
Beijar-me? Caro amigo, por tão pouco 
Afastado de mim, dos doces beijos
Pudeste-te esquecer? Porque me sinto 
Angustiada agora nos teus braços, 
E tu que dantes ou vendo-te ou lanado-te, 
Até o céu me sentia transportada, 
E tu com beijos quase me abafavas? 
Beija-me ou beijo-te eu. 
(Abraça-o)
Ai estão gelados
E mudos os teus lábios! - Que fizeste
Do amor que me tinhas? - Pois roubaram-no? 
(Afasta-se dele)
.
Fausto - Vem, meu amor, anima-te, acompanha-me!
Sempre hei de amar-te com paixão infinda;
Ms vem comigo agora, é quanto peço. 
.
Margarida - (Voltando-se para ele) 
- Pois és tu? És deveras?
.
Fausto - Sou, mas vamos.
.
Margarida - E quebras as cadeias? no teu seio
Recebe-me outra vez? Como é possível
Que te não cause horror? Sabes, amigo, 
A quem vens libertar?
.
Fausto - Anda, que a noite 
já Foge. 
.
Margarida - Minha mãe, tirei-lhe a vida. 
Afoguei o meu filho, que foi dado 
A mim e a ti. A ti também. Não posso
Crer ainda que és tu. As mãos me aperta; 
Sonho não é! As tuas mãos querida! 
Ai, estão molhadas, limpa-as, isto é sangue! 
Que fizeste, meu Deus! Peço que metas 
A espada na bainha. 
Fausto - Isso é matar-me, 
O que passou, passou. 
.
 Margarida- Não, viver deves!
As escovas que é mister encomendares, 
E amanhã sem falta, vou dizer-te; 
Dás o melhor lugar à mãe amada, 
Logo ao lado do irmão, de parte um pouco, 
Mas ainda perto, o meu sepulcro seja, 
Descanse o pequenino no meu seio...
E quem mais junto a mim quisera a campa?
Estreitar-me ao teu peito era delícia
Suspirada, porém que já não logro, 
É com esforço que para ti me chego, 
Como se tu cruel me repelisses; 
E todavia olhas-me tão doce, 
Tão piedoso.
.
Fausto - Foge, vem comigo, 
Se julgas que tal sou.
.
Margarida - Que daqui saia? 
.
Fausto - Sim, para a liberdade. 
.
Margarida - Se o sepulcro 
Me aguarda lá, se lá me espera a morte, 
Vamos! Daqui só sairei para a cova. 
Não vou mais longe. Parte tu, Henrique,
Oxalá que pudesse acompanhar-te. 
.
Fausto - Podes. Basta querer, está aberta a porta. 
.
Margarida - Partir não posso, não me resta esperança. 
De que serve fugir, se me perseguem? 
Mendigar é tão triste, e mais ainda
Com ruim consciência! Em terra estranha 
É tão triste fugir, andar errante, 
E quando nem assim logro escapar-lhes!
.
Fausto - Mas vou contigo.
.
Margarida - Corre, corre, salva 
O desgraçado filho. Pela senda
Que vai pelo ribeiro, além da ponte, 
Do bosque bem no meio, à mão esquerda, 
Junto da prancha que atravessa o tanque! 
Corre que ainda luta que braceja, 
Vê se o salvas, vê.
.
Fausto - Um passo e ficas livre. 
. Margarida - Se tivéssemos 
Passado aquele monte! Numa pedra
Minha mãe está sentada. Horrorizados
Eriçam-se os cabelos. Está sentada 
Minha mãe numa pedra, meneando
A pendida cabeça. Não acena, 
Não nos olha sequer. Pesa-lhe a fronte; 
Do prolongado sono não desperta, 
Dormia porque alegras nós folgávamos. 
Foram tempos felizes! 
.
Fausto - Se não valem 
Para mover-te súplicas nem rogos, 
Vou levar-te daqui. 
.
Margarida - Deixa-me! fôrça
Não consinto, não queiras arrastar-me! 
Em tudo o mais te fiz sempre a vontade. 
.
Fausto - Já aparece o dia Margarida! 
.
Margarida - O dia, raia o dia! O derradeiro!
Devera de ser de meu noivado o dia. 
Que estivesse já com Margarida
Não digas a ninguém. Ai, minha coroa, 
Perdi-a! Ainda nos vemos, não na dança. 
A multidão apinha-se em silêncio, 
As ruas e a praça não lhe bastam; 
Já lá dobram os sinos, já se quebra
A varinha fatal. Ei-los me arrastam
Manietada; o cadafalso subo; 
Sobre o colo de todos a segure
Que meu colo ameaça, se levanta.
A nudez do sepulcro invade a terra!
.
Fausto - Maldita a hora em que nasci!
.
Mefistofeles (Aparece) - Depressa!
Foge que estás perdido; o tempo gastas
Em tímido hesitar, em vans palavras, -
Já tremem os cavalos, amanhece!
.
Margarida - Das entranhas da terra quem surgiu?
É ele, é ele! Expulsa-o. Que procura
Nem santo lugar? Minh'alma busca! 
.
Fausto - Hás de viver. 
.
Margarida - Meu Deus, toda me entrego
A teu juízo. 
.
Mefistofeles - (A Fausto)
- Vem depressa, ou deixo-te
Com ela na prisão. 
.
Margarida - Onipotente, 
Sou tua, salva-me. Acudi oh anjos, 
Oh falanges celestes, protegei-me!
Henrique, de ti tremo. 
.
Mefistofeles - Foi julgada. 
.
Voz (De cima) 
Salvou-se. 
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Mefistofeles (Fausto)
- Vem comigo! 
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(Desaparece com Fausto)
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Uma voz (do  interior, esmorecendo)
- Henrique, Henrique! 
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F I M 

BIOGRAFIA DO AUTOR 
              João Wolfgang Goethe, o mais celebre dos petas alemães, nasceu em Frankfurt sobre o Meno, a 28 de Agosto de 1749, e morreu em Weimar a  22 de Março de 1832. Cursou a Universidade de Lípsia, principiando pouco depois a escrever dramas e poesias. Doutourou-se em Estrasburgo e exerceu a advocacia em Frankfurt. Em 1771 escreveu Götz de Berlichingen, O Caminhante e o Conto de Tempestade do Caminhante. No ano seguinte fixou residência em Wetziar, como advogado, mas teve que fugir dessa cidade por causa de uma intriga de amor. Em 1773 escreveu o Prometheu, Algumas sátiras burlescas, a comédia Erwin e Elmira e principiou O Fausto. Em 1774 Os infortúnios de Werther, e em 1775 estabeleceu-se em Weimar, onde foi conselheiro privado do duque e funcionário público muito útil. Dedicou-se à ciências naturais, fazendo notáveis descobertas. Em 1777 começou Os anos de aprendizagem de Guilherme Meister. Escreveu Efigênia, em prosa, em 1779, e em verso em 1786. Acabou o Egmont em 1787 e o Tasso em 1789. Em 1791 foi diretor do teatro da Corte em Weimar e de 1794 a 1805 associou-se a Schiller, dirigindo ambos a revista literária Horen. Acabou em 1796 Os anos de aprendizagem de Guilherme Meister, em 1797 Hermann e Dorothea, em 1809 As afinidades eletivas, em 1810 A Doutrina da Cor e em 1811 a sua autobiografia Fantasia e verdade. Em 1821 publicou Os anos de viagem de Guilherme Meister. Em 1831 terminou a segunda parte do Fausto. 
Nicéas Romeo Zanchett